São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 1994
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Betinho de Calcutá

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Evidente que não fui o primeiro mas também não fui o último a não ir na onda da campanha contra a fome do Betinho. Jorge Amado, três dias depois da minha crônica, escreveu carta publicada no Painel aqui da Folha apoiando minha dúvida e declarando-se também contrário à demagogia assistencial que a mídia estranhamente aprovou e esqueceu. A mesma mídia que agora se assombra com os mendigos de Recife comendo carne humana retirada do lixo de um hospital, não por que apreciem carne humana no cardápio, mas por que têm fome. Poderia perguntar: e as toneladas de arroz que os caras-pintadas aqui de Ipanema doaram à campanha? E os óleos de soja que um supermercado doou à campanha? Como no poema de Manuel Bandeira: onde estão todos eles? Evidente que também não foram roubados. Simplesmente ficaram no nível assitencial: em Calcutá ainda há fome apesar das seráficas obras de madre Teresa.
Bem, isso é passado, não se deve discutir as guerras púnicas, quem traiu quem na conjuração de Catilina e, obviamente, onde foi parar a campanha contra a fome. Discute-se agora se foi em junho de um ano ou janeiro de outro que ocorreu o emocionante lance em que o bicho doou dólares para a campanha humanitária do mesmo Betinho contra a Aids. O fato substantivo existe: o bicho doou dinheiro para a tal associação. Se foi ou não aqui ou ali, em janeiro ou setembro tanto faz. E o dinheiro foi depositado num banco americano –aí a porca torce o rabo, mas tudo bem, o que ia fazer o dinheiro do bicho em Nova York? Lavagem? Droga? Aquisição de medicamentos para os aidéticos?
Não me entusiasmo o suficiente com o jornalismo dito investigativo. Com alguns anos de ofício, sei que ele obedece aquele conselho do Barba Azul à sua sétima mulher: "Olha, você pode tudo, ver tudo, fuçar todo o meu castelo. Mas nunca entre nessa porta aqui. Tome esta chave mas nunca a use. No mais, o castelo é seu. Farte-se!"
A sétima mulher do Barba Azul fartou-se mas quis saber o que havia atrás daquela porta proibida. Deu no que deu.
Oitava mulher do Barba Azul, a mídia até agora tem sido obediente a seu amo e senhor.

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