São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 1994
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O fim da revisão

FÁBIO FELDMANN

A revisão constitucional micou de vez. Mas foi mesmo a revisão que não deu certo? Ou é o edifício político existente hoje no Brasil que está com problemas graves? Não só a fachada está descascando, pedaços de reboco caindo e ameaçando os pedestres; não só há infiltrações e as paredes não conseguem assegurar a privacidade de vizinhos; não só o lixo entope canaletas e se acumula pelas escadas; não só a fiação, que é antiquíssima, ameaça entrar em curto-circuito geral; não só as pilastras na garagem mostram sinais evidentes e preocupantes de rachaduras.
O problema central é que os condôminos, entre si e com o síndico, não conseguem chegar a um acordo sobre o encaminhamento de soluções para nenhum desses problemas, o que acaba contaminando todas as relações no prédio e tirando a credibilidade de instrumentos que poderiam apontar para uma saída a médio e longo prazos, antes de um desabamento a curto, com muitas vítimas a lamentar.
O balanço desses meses –até a presente evidência de que não dá mais mostra que a revisão, ao contrário do que dizem os contras, não passa de um instrumento que teria sido muito positivo se utilizado para provocar um real embate de posições sobre propostas concretas, para um começo de acordo legítimo sobre as reformas essenciais ao país. O problema é o Congresso, e não porque ele não teria "legitimidade" para revisar a Constituição; e sim porque ele não consegue mais negociar, nem internamente e nem com a sociedade. Esse é o xis da questão, que inviabilizará tudo, não só a revisão.
Tal constatação não tem nada a ver com as análises moralistas e limitadas que correm por aí, que afirmam que este Congresso não presta, mas o seguinte será maravilhoso e terá todas as condições para revisar o que quiser. A questão é: qual passe de mágica garantirá que a sociedade superará, em um ano, suas históricas deficiências políticas, suas apostas em aparências, seu maniqueísmo, seus currais eleitorais bregas e chiques, a dolorosa falta de informação para a maioria da população e elegerá o tal Congresso dos sonhos?
O Brasil –Congresso e sociedade, principalmente– não tem agenda política, isso é o que denuncia a ascensão e falência da revisão. O que há é muito jogo de cena, algumas propostas que parecem agenda, mas se recusam a discutir a fundo questões estruturais, outras que parecem revolucionárias e populares mas são arcaísmos que não respondem os desafios e a complexidade de hoje.
A constatação de que esta revisão não deu certo fará emergir uma série de pais da criança, que terão pronto o discurso de que "não aconteceu porque a pressão da sociedade organizada não permitiu". É preciso encarar, contudo, que não foi bem assim. No plano interno do Congresso, a fragmentação partidária e a tentação do oportunismo eleitoral foram decisivas. No plano externo, o parlamento revelou sua incapacidade de negociar com a sociedade a construção política de longo prazo; e a sociedade revelou-se perdida como o velho cego em tiroteio. Ou seja, também faltam lideranças políticas e sociais para garantir até mesmo os procedimentos mais singelos, como aqueles necessários para tocar a pauta do Congresso ou para sair da rotina das lamentações na sociedade. Não há vencedores no episódio revisão. É constrangedor para todos.
O que sobra é que a Constituição, à falta da referida agenda nacional, continua se arrastando como o lócus de todas as reivindicações, de todas as visões de Estado –misturadas e incoerentes entre si–, de todos os corporativismos, de todos os sonhos e todas as malandragens. Funciona como se fosse a derradeira garantia de que algo pode vir a ser de determinada maneira, desde que ali esteja inscrito. Não é verdade; a única garantia é a de que assim nada funcionará. Tudo bem, dá até para cinicamente entender como uma solução democrática, mas e o futuro, como fica?
O futuro fica ali na esquina, na próxima urna, nos discursos impactantes mas inconsequentes, neste buraco negro político e institucional –muito mais do que econômico– que está engolindo a transição brasileira para a democracia e aumentando o peso dos fatores sorte e acaso em detrimento de procedimentos planejados na organização da sociedade brasileira pós-ditadura.
Participei da trajetória da revisão como um dos sub-relatores, com algumas convicções básicas: contribuir para a discussão e implementação da reforma do Estado, garantir direitos de minorias e elaborar uma releitura dos dispositivos de proteção ambiental inscritos no texto, à luz da necessidade de entendê-los não mais como causa à parte, mas como integrantes do processo de desenvolvimento. Nesse último campo não tenho do que me queixar.
Os avanços no debate da agenda ambiental brasileira foram expressivos. Juntamente com a assessoria técnica do Congresso e representantes de ONGs chegamos ao que entendo ser nosso verdadeiro raio de ação: a sustentabilidade econômica e social, baseada num novo modelo de uso dos recursos naturais e de gerenciamento ambiental. Teria sido muito saudável discutir tudo isso amplamente, mas um a um os espaços de construção do permanente e do sólido no país têm sido desperdiçados pela política ladina, sustentada por segmentos ladinos da sociedade, de todos os matizes ideológicos, para quem ainda há vantagens em continuar nessa brincadeira de roleta-russa.
As multidões ainda não estão na rua, os saques são esporádicos, as eleições existem e são um magnífico momento de transacionar dinheiro e poder, a imprensa é sensível a teatralizações políticas superficiais, então pra que mudar? A corda está esticada mas ainda não arrebentou. E la nave và...

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