São Paulo, sábado, 23 de abril de 1994
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Retrospectiva marca os 90 anos de De Kooning

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Willem de Kooning não pinta há anos. Sofre do mal de Alzheimer. Considerado um dos maiores pintores do século, ele comemora hoje 90 anos e será homenageado, em maio, com uma grande retrospectiva na National Gallery, de Washington.
"Estou sempre em alguma parte da pintura", diria o artista de origem holandesa, que chegou aos EUA em 1926 e logo entendeu que seria tributário direto da mitologia heróica ao ato criador promulgada pelo poeta Walt Whitman.
Raramente na história da arte uma obra esteve tão intensamente identificada a seu autor como em De Kooning.
Daí a mitificação da vida e da figura do artista e o marketing em torno da biografia do pintor que Mark Stevens e Annalyn Swan preparam para a Doubleday, controlando os casos amorosos e os porres desesperados no Village, em Nova York, nos anos 50, ao lado e Jackson Pollock e outros mitos de expressionismo abstrato.
Em 1938, De Kooning começou a pintar uma série de figuras a partir de seu reflexo no espelho ou de fotos de si mesmo.
O uso de um modelo pode não ser compatível com a definição da "action paiting"(a pintura como ação e não mais representação) rótulo ao qual boa parte do trabalho de De Kooning seria associada a partir dos anos 50, mas a idéia de pintar a si mesmo está no centro dessa obra que vai marcar uma reviravolta na arte do século.
"Eu me vi de pé diante de mim e fiquei emocionado. Aquilo me pareceu tão trágico que fui tomado de piedade por mim mesmo", disse o pintor em 1981.
Inicialmente ligado ao grupo AAA (American Abstract Artists - criado em 1936), De Kooning abandonará o movimento nas primeiras reuniões, recusando o dogmatismo da abstração defendida por seus membros: "Não pinto com idéias preconcebidas da arte".
Em 1948, o crítico Clement Greenberg dirá, sobre uma exposição de telas em preto e branco, que de Kooning "é um pintor totalmente 'abstrato'; não há nenhuma imagem identificável nos dez quadros da exposição".
Ao retomar a figuração com suas célebres "Mulheres", no final dos anos 40, após uma fase abstrata – provocando críticas de seus colegas abstracionistas -, o pintor irá reafirmar sua posição: "Não me sinto nem um pouco na pele de um pintor abstrato".
"Considero que toda pintura é livre . (...) O instinto de grupo podia ser uma boa idéia, mas há sempre um pequeno ditador que pretende fazer de seu instinto pessoal o instinto de grupo. Hoje, não existe estilo de pintura. Há tanto naturalistas entre os pintores abstratos como pintores abstratos na escola dita realista", disse o artista em 1951, no MoMA.
O princípio que o movia era o de uma liberdade absoluta, única possibilidade de manifestação de uma arte verdadeira. O que explica que um artista como ele, responsável por uma verdadeira erupção da arte moderna, tenha defendido não só a responsabilidade da figuração como o Renascimento.
"Se falo do Renascimento não é por nostalgia (...) mas antes por ficar horrorizado quando ouço as pessoas dizendo que a pintura renascentista só serve para ilustrar calendários. (...) Foi em função do homem, e não apesar dele, que a pintura foi considerada uma arte", declarou De Kooning em 1950, no auge do expressionismo abstrato, quando todas as regras de perspectiva e verossimilhança renascentistas já haviam sido varridas pela arte moderna.
A idéia do homem no centro da arte – e da tela –, o homem pintando a si mesmo, é o que vai tornar compatível o elogio que De Kooning faz ao Renascimento e à definição de "action painting" dada pelo crítico Harold Rosenberg:
"A um certo momento, os pintores americanos começaram a ver na tela uma arena onde agir - não mais um espaço onde reproduzir, redesenhar, analisar ou exprimir um objeto real ou imaginário. O que devia se desenvolver na tela não era mais uma imagem mas um acontecimento. (...) A imagem não passa do resultado do encontro (entre o pintot e a tela)".
O objeto é banido e o que passa a contar é a "revelação contida no ato", o gesto, a tensão desse enfrentamento entre o artista e a tela.
É o artista que se coloca dentro da tela, de uma forma radical. "Uma pintura que é um ato é inseparável da biografia do artista. (...) A 'action painting' participa da mesma substância metafísica que a existência do artista. Ela suprimiu toda distinção entre a arte e a vida", escreve Rosenberg.
A pintura passa a ser o espaço para onde o artista consegue passar sua experiência, passa a ser o próprio real, que acontece no ano de criação – daí a dificuldade de pôr
um ponto final.
Para Greenberg, o problema de De Kooning nunca foi o quadro acabado mas "acabá-lo". O artista chegou a pintar a mesma tela por 18 meses e só entender que a tinha terminado quando alguém que visitava o ateliê lhe avisou.

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