São Paulo, sábado, 23 de abril de 1994
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Processo penoso de construção de uma nação pluriétnica

FERNANDO AUGUSTO ALBUQUERQUE MOURÃO

"As crenças referem-se à maneira como a vida deveria ser vivida (...)"
Isaiah Berlin

Às vésperas das eleições que se realizarão de 26 a 28 do corrente mês na África do Sul, mesmo sem esperar um perfeito entendimento das populações envolvidas no processo de democratização desse país da África Austral, acredito que a data deva ser comemorada pela comunidade internacional como um sinal altamente positivo de um processo político importante do ponto de vista do equilíbrio da ordem internacional.
As contradições e antagonismos que se registram no tecido social sul-africano tornarão o processo político penoso, em que pesem os extraordinários esforços da engenharia política de potencializar as ligaduras sociais em torno do conceito de liberdade, articulado sobre a necessidade de sobrevivência dos dois principais atores envolvidos no processo: o Congresso Nacional Africano (CNA), que já deu mostras de que a 'aliança' é indispensável para que a África do Sul obtenha vantagens face ao reordenamento do sistema internacional, e o Partido Nacional, que reconheceu que a África do Sul, no "apartheid", não era a potência regional que julgava ser.
Os complicadores estão de ambos os lados. No contexto africano da África do Sul o fator étnico assume contornos com peso político e com uma densidade muito superior em relação a países vizinhos, como Moçambique, por exemplo.
As elites dos grupos étnicos, nomeadamente os zulus, mostram resistência a abrir mão de certos privilégios que mantiveram no regime do "apartheid" –o qual habitualmente instrumentalizou essa problemática.
Do lado dos brancos, o quadro não é igualmente homogêneo. Persistem e persistirão durante muito tempo formações religiosas de natureza excludente, formações políticas de extrema direita e potencialmente uma massa de brancos que certamente irá atribuir suas potenciais dificuldades financeiras ao fim do "apartheid".
Outro complicador do lado africano reside numa parcela de elementos extremistas do CNA, hoje relativamente enquadrados do ponto de vista da organização política, mas que, caso não se registre um processo de desenvolvimento com um mínimo de reflexos no bem-estar da população (e os problemas sociais são profundos na África do Sul, confundindo-se com a distribuição racial da população) poderão relançar fantasmas de carizes vários encobrindo a luta pelo poder.
A construção da nação pluriétnica –ainda um projeto– tem dois caminhos: ou reforçar o conceito unitário pertinente ao Estado Moderno, ou aceitar o país real e construir o Estado plurinacional, concepção que pode aparentemente favorecer a territorização étnica e racial.
Cabe à comunidade internacional apoiar abertamente o processo de democratização em curso na África do Sul. A União Européia já reagiu ao considerar a África Austral como área prioritária, contribuindo no sentido de não só apoiar o desenvolvimento, mas o próprio processo democrático nos seus arranjos e equilíbrios entre a concepção unitarista e a concepção plurinacional.
Registre-se que o processo de construção de uma nação pluriétnica é extremamente lento e conturbado, como se pode ver ainda hoje em alguns países da Europa.

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