São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Conceição ataca 'mistificação' de FHC pelos intelectuais

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Dona de uma personalidade explosiva, a economista Maria da Conceição Tavares resolveu entrar na querela intelectual que polariza adeptos da candidatura Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de um lado e entusiastas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de outro.
Pela primeira vez candidata a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT do Rio de Janeiro, Conceição, que completa 64 anos no dia de hoje, volta a encarnar a figura da "portuguesa dramática", como já se auto-definiu, tal como fez quando chorou diante das câmeras de TV ao sair em defesa do finado Plano Cruzado, em 1986.
A economista, que chegou ao Brasil há 40 anos, no Carnaval de 1954, pontifica que o plano de estabilização econômica "já deu errado". Irritada, ela ataca antigos colegas de academia que, numa "despudorada marcha à direita", estariam embarcando numa "mistificação" em torno de FHC.
Folha - Em artigo publicado na Folha há 15 dias, o filósofo José Arthur Giannotti defendeu a necessidade de o Brasil integrar-se rapidamente na ordem internacional e argumentou que, pelo espectro político que representa, só a candidatura de Fernando Henrique seria capaz de fazê-lo. Como ficamos?
Maria da Conceição Tavares - Ficamos espantados, é claro. Estamos numa desordem danada. Os blocos estão em processo de franca desintegração. A Alemanha, que era a grande potência européia, está esfacelada. A Ásia é uma confusão. O contencioso do EUA com o Japão é outra. O que o Giannotti quer? Seguir a onda neoliberal do "consenso de Washington"? Vai desintegrar o Brasil. Se não tivermos um ponto de vista nacional, a Amazônia vai para um lado, o Rio Grande do Sul para outro, o Centro-Sul se decompõe etc.
Folha - Como assim, ter um ponto de vista nacional?
Conceição - O Lula vai tentar defender o Estado nacional. O Fernando Henrique vai tentar integrar o país suavemente no bloco americano, no "consenso de Washington". O que eles não entendem é que a integração na globalização é péssima para o Brasil.
Folha - A aliança PSDB/PFL é social-democrata, conservadora ou o quê?
Conceição - É muito moderninha. O Fernando comprou de sua "entourage" intelectual a idéia da globalização, da privatização, da desregulamentação etc. Isso não vai dar certo no Brasil. A única coisa que os EUA querem é que a gente abra o comércio para eles, que precisam fazer na América Latina um superávit comercial que segure o déficit que eles têm com o Japão. O Fernando sabe muito bem do que estou falando.
Folha - Ele estaria então fazendo um discurso para se eleger e, uma vez na Presidência, adotaria uma política diferente, mais à esquerda, como defendeu Giannotti?
Conceição - Essa de dizer uma coisa e fazer outra não era muito típico do Fernando, mas se for assim, se ele estiver só com um blá-blá-blá para a direita e depois pretende fazer o contrário, eu pergunto: faz o contrário como? Ou ele acha que vai enrolar o Antônio Carlos Magalhães? Francamente, o Giannotti pode entender de filosofia, mas de política e de economia ele não entende.
Folha - Então a social-democracia, no caso do PSDB, não passa de uma sigla?
Conceição - Eu não conheço o programa social do PSDB, mas conheço o do PFL. Sabe qual é? Imposto de renda de 10% para todo mundo, privatização da Saúde, da Previdência. Quando ainda era sociólogo e concordava com o que ele mesmo dizia, o Fernando Henrique falou que o futuro do Brasil não poderia ser o passado da Europa. Se houver algo parecido com social-democracia no Brasil, ela está no PT. Folha - E o plano de estabilização? Se ele der certo, não será um bom ponto de partida para qualquer que seja o próximo presidente, como disse o sociólogo Francisco Weffort, seu colega de PT?
Conceição - Primeiro esse plano não estabiliza nada. Segundo, tem estabilizações que não são boas para todos. Durante o regime militar, o doutor Delfim Netto dizia que governava para 40% e que Deus cuidava dos outros 60%. Pelo visto, o plano FHC governa para 20% e o diabo que cuide do resto.
Folha - Mas a sra. não explicou porque, afinal, o plano não estabiliza nada.
Conceição - O plano só pode dar parcialmente certo para o candidato, do ponto de vista eleitoral. A proposta de inercializar a inflação já furou. Estamos tendo inflação em dólar, uma confusão dos diabos. E eles dizem que essa estabilização é neutra. É uma piada. Como neutra? O salário mínimo vale US$ 62. É a primeira vez, desde 1982, que num plano de estabilização o salário mínimo é inferior aos US$ 100.
Folha - Por que a sra. trocou o PMDB pelo PT?
Conceição - Cristianizaram o velho Ulysses. Depois do vexame dos 4% na eleição de 89, falei para o Ulysses que ele tinha sido boicotado, que aquele não era um partido sério e eu estava caindo fora. Lembro que ele pediu para que eu ficasse. Respondi que, se tivesse que entrar em algum partido seria o PT, apesar de saber dos meninos meio xiitas, que iam me torrar a paciência. Foi esse desastre de plano FHC e essa atitude de mistificação da elite intelectual brasileira, essa marcha à direita despudorada –tudo isso que me fez ir à luta. Se este país tiver algum destino nas próximas duas décadas, vai depender da capacidade do PT de democratizá-lo. Quanto aos xiitas, acho que mais valem eles do que um "mauricinho".
Folha - E o argumento da governabilidade, que tem sido defendido por PSDB e PFL para justificar a aliança?
Conceição - Não estou nem um pouco interessada por pactações de governabilidades abstratas. Isso é conversa para boi dormir. No Nordeste, não me interessam pactos com os senhores que meteram no bolso todos os subsídios que foram para lá durante 30 anos. O pacto que me interessa é aquele que muda a correlação de forças e visa os filhos da pobreza, os sem destino.
Folha - Adeptos de FHC lembram que o PT está aliado ao PC do B, que apoiou o massacre dos estudantes na praça da Paz Celestial.
Conceição - Se eles acham que o PC do B tem em relação ao PT a mesma importância do PFL em relação ao PSDB, devem estar brincando. O PC do B é uma coisinha deste tamanho, uns pobres coitados. O Giannotti é amigo do Fernando e está fazendo racionalizações brutais para justificar sua opção. Nessa eu não entro. Lamento muito que meu amigo Fernando Henrique tenha escolhido o caminho contrário ao que defendeu quando era intelectual. Hoje, Fernando Henrique é o homem e suas circunstâncias. Lula é maior que suas circunstâncias.

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