São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Saúde e Constituição doente

ANTONIO KANDIR
As cenas de dor e desespero a que temos assistido, ao vivo e em cores, nos hospitais de todo país, são a prova dramática do estágio terminal a que chegou o sistema público de saúde.
Pela comoção que provocam, as cenas fornecem vasta munição a demagogos e populistas, menos preocupados com a solução do problema do que com os rendimentos eleitorais que a denúncia supostamente permite obter.
Mostra inequívoca da propensão pelo palavrório oco é o comportamento das forças ditas "populares" e de seus adversários conservadores, no processo da revisão constitucional.
A pretexto de defender direitos sociais, os "contras" têm lutado para impedir que se estabeleça uma agenda mínima que torne viável o andamento do processo.
Contam, para tanto, com a ajuda dos partidos que se aferraram à questão certamente importante, mas cuja defesa intransigente não compensa o preço de paralisar o processo constitucional.
Claro que a revisão não pode providenciar remédio milagroso para a enfermidade crônica da saúde pública. Mas pode encaminhar solução duradoura e definitiva para o financiamento do setor público, em geral, e da Seguridade Social, em particular, que é onde a "porca torce o rabo".
Um dos nós do financiamento à rede hospitalar e ambulatorial está na dependência de transferências da Previdência, conforme determina o sistema de caixa único da Seguridade Social, estabelecido pela Constituição de 1988.
O leitor há de se lembrar ao menos de alguns capítulos da infindável novela dos repasses de recursos. As transferências tornaram-se um problema recorrente na medida que a Previdência passou a enfrentar crescente tendência a produzir déficits de caixa.
Essa tendência resulta da elevação mais que proporcional das despesas previdenciárias nos últimos anos. Em 1988, as despesas com benefícios correspondiam a cerca de US$ 7 bilhões. Gastava-se 65% do total arrecadado com as contribuições.
Hoje gasta-se em torno de US$ 25 bilhões, quantia correspondente a 109% do total de contribuições arrecadadas, não obstante manter-se o benefício médio em valores indignos.
Para cobrir essa diferença, a Previdência vê-se obrigada a socorrer-se, com frequência, de recursos do Tesouro, seja retendo transferências devidas à saúde, seja solicitando ao Tesouro que assuma parte das obrigações com benefícios previdenciários.
Mantida a estrutura atual de custos e despesas da Previdência, a situação só irá agravar-se, pois o "envelhecimento" progressivo da população brasileira está estreitando cada vez mais a relação entre contribuintes e beneficiários (essa era de 5/1 nos anos 60, está em 2/1 e deve atingir 1/1 no começo do próximo século).
Para remediar situações de absoluta emergência na rede hospitalar, o Tesouro é obrigado a tomar recursos emprestados, através da colocação de títulos ou da emissão de moeda, para impedir o colapso total da assistência.
No quadro atual das finanças públicas, essa forma de financiamento joga mais lenha na fogueira da inflação (por isso criou-se o Fundo Social de Emergência).
Trata-se de um jogo em que, salvo uma minoria, todos perdem: os que necessitam do atendimento da rede pública de hospitais e ambulatórios, submetidos a situações indignas; os aposentados, que recebem benefícios de valor médio irrisório; e o país como um todo, na forma de mais inflação e crescente desagregação social.
Para resolver esse emaranhado de problemas, há uma série de desafios a enfrentar na revisão. Desafios relativos às reformas fiscal, tributária e da Seguridade Social.
Enfrentá-los com coragem, assumindo os ônus eleitorais decorrentes, é o que de melhor se pode fazer para minorar a dor e o desespero dos mais pobres. Já que, de indignação verbal, estéril e demagógica, o inferno está cheio.
ANTONIO KANDIR, 40, engenheiro, doutor em Economia, foi secretário de Política Econômica do então Ministério da Economia (governo Collor). É autor de "A Dinâmica da Inflação" (ed. Nobel) e coordenador de "Um Projeto para o Brasil - A Proposta da Força Sindical" (ed. Geração).

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