São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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O plano pode fracassar sem a quarta fase

MAILSON DA NÓBREGA

A estratégia atual de estabilização desfruta do apoio de economistas e outros analistas do processo inflacionário brasileiro.
Como se sabe, o plano tem três fases: 1) ajuste fiscal para os anos de 1994 e 1995 (o Fundo Social de Emergência –FSE); 2) criação e disseminação de uma unidade de conta (a URV, ora em implementação); e 3) a reforma monetária (instituição futura de uma nova moeda, o real).
A idéia básica foi criar, em primeiro lugar, as precondições fiscais. Em seguida, viria uma fase de uniformização e sincronização dos mecanismos de indexação, preparatória para uma ação de súbita estabilização da moeda.
A URV substituiria uma profusão de indexadores, enquanto os diferentes períodos de reajuste de preços e contratos atualmente em uso (semana, quinzena, mês etc.) dariam lugar ao reajuste diário.
Buscava-se não repetir o fracasso dos planos de congelamento, causado por: 1) ausência de um regime fiscal adequado para sustentar a estabilização; 2) disfunções geradas pela intervenção no sistema de contratos; e 3) desequilíbrio de preços relativos no momento do choque.
Em todos os casos, a repressão da inflação residual, necessária para manter a ferro e fogo o congelamento, produziu o ágio e o desabastecimento, que levaram ao descongelamento e à reintrodução da dinâmica inflacionária anterior.
O novo plano inclui ainda uma grande novidade: o pré-anúncio de seus passos. Apesar desses cuidados, a implementação das idéias da equipe econômica enfrentou restrições políticas e operacionais, começando com o FSE.
A força política dos Estados e municípios no Congresso, maior do que a necessidade de mudar o regime fiscal, resultou em um ajuste menor do que o pretendido.
Havia o risco de a Justiça não aceitar a conversão de tributos em URV, o que exigiu a manutenção da Ufir, um indexador baseado na inflação passada e, portanto, gerador de inércia inflacionária.
Sincronizar inteiramente os reajustes de preços se mostrou igualmente inviável. Nas transações de pequeno valor, o custo da mudança diária é impraticável. A massa de consumidores pensa em cruzeiros reais. Ninguém carrega URV no bolso.
Portanto, itens consumidos pela maioria da população –pão, leite, café, feijão, arroz, produtos de higiene e limpeza, remédios de uso generalizado e assim por diante– dificilmente serão convertidos em URV.
Por último, a revisão constitucional parece ter fracassado. Esperava-se a aprovação de reformas estruturais que sinalizassem uma mudança inequívoca do regime de política econômica. Sem isso, não haverá estabilidade duradoura da moeda após a queda da inflação, que acontecerá na introdução do real.
O plano constituiria, assim, mais uma tentativa frustrada de estabilizar a economia brasileira. A partir desse raciocínio, alguns analistas passaram a prognosticar o seu fracasso.
A conclusão é precipitada, a menos que se estivesse imaginando que o plano reunia todas as condições para estabilizar a economia ainda no atual governo.
Vencer uma inflação como a brasileira é tarefa para dois a três anos de trabalho árduo, persistente e competente, associado a profundas reformas estruturais. Não poderia acontecer em dois a três meses, muito menos em um governo heterogêneo, sem base parlamentar e às portas de uma eleição presidencial.
O plano deve ser visto como um longo processo. Ao atual governo caberiam as medidas iniciais, destinadas a eliminar a inércia inflacionária. A criação do real fará a variação dos preços declinar abruptamente para algo entre 2% e 4% ao mês.
Esta inflação residual pode cair adicionalmente nos meses seguintes, nos quais provavelmente a taxa de câmbio e os preços públicos estarão fixos. Em seguida, a inflação voltaria a crescer moderadamente ao final do ano, pois o regime de política econômica seria insuficiente para neutralizar a expansão de demanda derivada do estancamento da superinflação.
O ataque derradeiro e cabal à inflação ocorreria no início do próximo governo, com apoio nas reformas da Constituição.
Nessa sequência, faltarão as mudanças constitucionais, mas isso não é uma ameaça às fases sob a responsabilidade do atual governo. Mesmo que a revisão tivesse sido um êxito, seus efeitos financeiros e a decorrente mudança no regime fiscal somente se efetivariam a partir de 1995. Até lá, o controle orçamentário contará com a flexibilidade gerada pelo FSE.
Perde-se, por ora, a influência dessas mudanças nas expectativas dos agentes econômicos. O terreno perdido poderá, contudo, ser recuperado à frente, caso o futuro presidente dê continuidade ao plano.
É alta a probabilidade de o novo governo conseguir as reformas necessárias. Disporá da legitimidade renovada pelas urnas, da força política derivada de uma eleição plebiscitária e de melhores condições para formar uma maioria parlamentar estável.
As chances serão ainda maiores se o atual Congresso encontrar uma saída honrosa para o fracasso da revisão constitucional: uma fórmula para continuá-la a partir do próximo ano. A rigor, com ou sem revisão, o processo de estabilização somente se concluiria no governo seguinte.
Três indagações poderiam ser levantadas a esta altura. Primeira, se as dificuldades do plano, principalmente a de reduzir substancialmente o desequilíbrio de preços relativos, produzirá uma inflação residual ameaçadora.
Segunda, se essas mesmas dificuldades autorizariam lançar um plano tão ousado e ao mesmo tempo dependente de sua continuidade no futuro governo.
Terceira, se o novo presidente não for o autor do plano, qual será sua disposição de continuá-lo.
Qualquer que sejam as respostas, há pelo menos uma afirmação possível: o plano tem, no mínimo, considerável chance de produzir uma transição satisfatória para o novo governo. Mas, se este não implementar a quarta fase, para concluir a empreitada, correrá o risco de fracassar.

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