São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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As diretas e o eterno regresso da conciliação

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

As diretas eo eterno regresso da conciliação
As elites preferem conquistar o poder pela via sem riscos
No jardim de inverno da bela casa de Miguel Lins no Leblon, Rio de Janeiro, no final de 1983 os convidados já estão impacientes. O generoso anfitrião. Convocados por Severo Gomes, aguardam a chegada do governador Franco Montoro. Todos impacientes. Castellinho sussurra, José Aparecido cisma quieto faz horas, Eduardo Muylaert medita, José Honório Rodrigues mantém a animação.
Afinal, Montoro chega. Severo quebra o gelo com graça. O governador desfia um relato de sua administração. De repente um brado do fundo: "Farol alto, Montoro, farol alto!. Por que você não lidera a campanha pelas diretas no Brasil?".
Era Otto Lara Resende, do fundo da varanda: por que o governador de São Paulo, não lança um manifesto e convoca um comício? Montoro assume o repto. No avião de volta para São Paulo, o governador redige um texto de "A Nação tem o direito de ser ouvida" que deveria ser proposto numa reunião de governadores. O comício seria no dia 25 de janeiro, dia da fundação de São Paulo.
Água fria na fervura: no governo a maioria torce o nariz, pura loucura do Montoro, marcar alguma reunião para um dia feriado e comício, imagine, ninguém vai. A executiva do PMDB acolhe o entusiasmo do governador com o mais gélido e ostensivo ceticismo.
Montoro resolve ampliar a convocação do comício para as entidades da sociedade civil e outros partidos. Lá estão numa reunião à noite no Palácio dos Bandeirantes representantes do PDT, do PT, dezenas de entidades, a Comissão Justiça e Paz, Margarida Genevois e muitos. Define-se o lugar, a praça da Sé e confirma-se a data. O PMDB concorda de má vontade.
Alguns dias depois das fotos triunfantes do comício, num jantar para fazer o balanço, Ulysses Guimarães, seríssimo olha e fulmina: "Vocês inventaram esse comício das diretas em janeiro. Podem-me fazer o favor de dizer o que vamos fazer até chegar março?". Fica evidente que a campanha das diretas à quente atropela o calendário da transição.
As resistências à iniciativa de Montoro iluminavam as dificuldades que estavam por vir. A emenda Dante de Oliveira fora apresentada em março de 1983. A direção nacional do PMDB organizara em 15 de junho um comício em Goiânia que havia reunido 5.000 pessoas.
Ulysses está no ato pelas diretas em Teresina, Piauí, uma semana depois. O PT organiza em 25 de novembro um comício pelas diretas na histórica praça do Pacaembu, em São Paulo. A campanha das diretas somente conquista as ruas depois do comício de 25 de janeiro de 1984 na praça da Sé.
Convocado por uma decisão pessoal, quase solitária de Montoro. Que assume riscos em plena ditadura, joga o peso do governo de São Paulo, leva a sério a frente suprapartidária, com o PT e o PDT e abre espaço para as organizações de sociedade civil.
Antes de 25 de janeiro, apesar daquele endosso formal à campanha das diretas, não havia muita clareza no PMDB se desencadear a campanha iria apressar ou atrasar os últimos atos da abertura pelo governo militar que relutava.
Ninguém sabia exatamente qual seria o melhor curso. Nem se tinha certeza em janeiro de 1984 que uma bandeira etérea, como a reivindicação pelas eleições diretas, pudesse comover os corações e as mentes da população dali a um mês.
Largo equívoco, no entanto, supor que na estratégia das diretas já está em germe a ida ao Colégio Eleitoral. O povo pelo menos não tinha sido avisado que estava participando de uma coreografia inútil.
O comício de 15 de abril, no vale do Anhangabaú, em São Paulo, o maior comício da história da República, foi para valer. Naquele momento, às vésperas da votação da emenda, o entusiasmo, a dedicação era imensa.
O enigma só começa a ser posto depois da derrota da emenda das diretas em 25 de abril: foi a emenda Dante de Oliveira derrotada, e todas as outras abandonadas, porque algumas correntes da oposição preferiam ganhar no Colégio Eleitoral com Tancredo Neves ou é somente após a derrota da emenda que os entendimentos que vão levar à Aliança Democrática?
Vou e volto às notas diárias tomadas naquele ano e procuro detectar o momento da virada, indícios, conversas, gestos, falas que pudessem flagrar a virada de curso.
Tarefa impossível porque na campanha das diretas e em 1984 havia vários cursos, vários jogos que se desenrolavam simultaneamente em vários tabuleiros.
Um jogo era a campanha das diretas, os comícios, o amarelo que Caio Graco Prado inventou, a frente para valer com o PT e o PDT, mobilização nas ruas. Outro jogo eram os entendimentos de Tancredo Neves, grupo mineiro e suas conexões paulistas, para cindir o partido do governo com vistas ao Colégio Eleitoral e tranquilizar militares.
Ian Roxborough, um sociólogo inglês, diante dos rumores de golpe na época, retrucava sarcástico: "Golpe, que golpe? Já houve. É a Aliança Democrática". A campanha das diretas expõe e atualiza as duas vertentes que marcam a história política brasileira. A mobilização, a participação popular, a manifestação autônoma das ruas que pressiona o imobilismo dos partidos, a ruptura, por um lado.
Em face dela, a "síndrome Bernardo Pereira de Vasconcelos" –o liberal que vira conservador no Império– a compulsão para frear o "carro revolucionário" (mera alegoria, pois sempre se confunde tímidos ensaios de democratização com "revolução").
Na tradição política, as elites brasileiras, os liberais de ontem preferem conciliar com os conservadores e conquistar o poder pela via menos arriscada, no caso da transição política em 1994, o Colégio Eleitoral.
Continua em aberto saber se a interrupção da campanha das diretas, depois da derrota das diversas emendas, e a participação no Colégio Eleitoral era o melhor curso possível. E como essa experiência marcou o curso da democracia no Brasil. não é, talvez, por acidente que no décimo aniversário da derrota das diretas o mesmo perfil da Aliança Democrática esteja sendo buscado por herdeiros dos liberais e conservadores.

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