São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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DE ALIANÇAS, ATRASOS E INTELECTUAIS

MARILENA CHAUI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O capitalismo atual opera por exclusão e não por inclusão
A gestão Itamar já criou um governo do PFL e PSDB
Nos últimos dias, artigos, manifestos, debates e conversas políticas ocuparam os intelectuais, pelo menos em São Paulo e no Rio. Assunto: a candidatura de FHC e a aliança do PSDB com o PFL. É bem verdade que alguns intelectuais procuraram separar os dois tópicos, mas o artificialismo dessa separação salta aos olhos, tanto porque o manifesto pró-FHC descreve o candidato com qualidades tais que a aliança se torna incompreensível, quanto porque os artigos declaram a naturalidade e a necessidade da aliança PSDB-PFL.
Há, nos vários artigos, um aspecto curioso. Em lugar de afirmarem simplesmente que a candidatura de FHC é natural para o PSDB e, portanto, incompatível com uma aliança com um partido que já possua candidato e de explicarem porque a aliança PSDB-PFL é natural e necessária, os articulistas se sentem obrigados, sem que entendamos por quê, a explicar as razões para que a aliança não seja com o PT e, para fazê-lo, usam todos o mesmo procedimento, qual seja, a desqualificação política do PT.
Dizem os intelectuais que, aparentemente, a aliança natural seria entre PT e PSDB. De fato, alguns anos atrás, o PSDB nasceu sob o impacto das experiências de Felipe Gonzalez, na Espanha, e de Mitterrand, na França. Assim, sob os efeitos da ascensão de um centro-esquerda europeu, o grupo dissidente do PMDB tornou-se um partido social-democrata, ainda que, para isto, lhe faltassem as duas condições historicamente necessárias: forte base sindical e o ideário socialista. Nestas circunstâncias, uma aliança com o PT lhe permitiria afinar e adequar seu perfil político, dando-lhe propriamente um conteúdo social-democrata, ao mesmo tempo em que lhe permitiria diferenciar-se do petismo e da direita. Por que: aparentemente? Porque, realmente, alega-se, o PT é muito "atrasado", não havendo como aliar-se a ele. Por suposto, então, o PFL é "adiantado" ("moderno", como se gosta de falar), ainda que represente as forças oligárquicas que não só deram sustentação à ditadura, mas sobretudo dominam o país há 494 anos. Curiosa força moderna responsável pelo atraso social, econômico e político em que vivemos...
O "atraso" petista é apresentado sob três traços: estatismo arcaizante, corporativismo avesso às práticas da democracia representativa e radicalismo esquerdista das direções, incapazes de compreender a política como arte da negociação e da aliança. Em suma, o PT não possui competência para ser contemporâneo de nosso tempo e do capitalismo atual.
O que é o capitalismo atual para um país como o Brasil? Evidentemente, os intelectuais, quando sérios, embatucam na resposta. Por quê? Pela singela razão de que, hoje, ninguém ainda se sente em condições de apresentar uma análise completa do modo de produção capitalista seja para os centros hegemônicos, seja para o Brasil. Estudos esparsos e isolados, enfatizando cada qual um aspecto do capitalismo, ainda não nos permitem conhecê-lo tal como foi conhecido no século 19 e após a Segunda Guerra. Que sabemos sobre o capitalismo contemporâneo? Se reunirmos diferentes estudos, poderemos obter um quadro apenas aproximativo do que se convencionou designar como "colapso da modernização";
1. o desemprego tornou-se estrutural, deixando de ser acidental ou expressão de uma crise conjuntural, porque a forma contemporânea do capitalismo, ao contrário de sua forma clássica, não opera por inclusão de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas por exclusão;
2. o monetarismo e o capital financeiro tornaram-se o coração e o centro nervoso do capitalismo, ampliando a desvalorização do trabalho e privilegiando a mais abstrata e fetichizada das mercadorias, o dinheiro;
3. a terceirização tornou-se estrutural, deixando de ser um suplemento à produção que, agora, não mais se realiza sob a antiga forma fordista das grandes plantas industriais que concentravam todas as etapas da produção –da aquisição da matéria prima à distribuição dos produtos–, mas opera por fragmentação e dispersão de todas as esferas da produção, com a compra de serviços no mundo inteiro;
4. a ciência e a tecnologia tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converterem em agentes de sua acumulação. Consequentemente, mudou o modo de inserção dos cientistas e técnicos na sociedade (tornaram-se agentes econômicos diretos) e a força capitalista encontra-se no monopólio dos conhecimentos e da informação;
5. diferentemente da forma keynesiana e social-democrata que, desde o pós-Segunda Guerra, havia definido o Estado como agente econômico para regulação do mercado e para investimento nas políticas de direitos sociais, agora, o capitalismo dispensa e rejeita a presença estatal não só no mercado, mas também nas políticas sociais, de sorte que a privatização também tornou-se estrutural;
6. a transnacionalização da economia torna desnecessária a figura do estado nacional como encrave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo (colonialismo político-militar, geopolítica de áreas de influência, etc), de sorte que o centro econômico e político encontra-se no FMI e no Banco Mundial;
7. a distinção entre países de Primeiro e Terceiro Mundo tende a ser substituída pela existência, em cada país, de uma divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de miséria absoluta. Há, em cada país, um "primeiro mundo" (basta ir aos Jardins e ao Morumbi, em São Paulo, para vê-lo) e um "terceiro mundo" (basta ir a Nova York e Londres para vê-lo). A diferença está apenas no número de pessoas que, em cada um deles, pertence a um dos "mundos", em função dos dispositivos sociais e legais de distribuição da renda e garantia de direitos sociais consolidados.
A este conjunto de condições materiais precariamente esboçado aqui, corresponde um imaginário social que busca justificá-las (como racionais), legitimá-las (como corretas) e dissimulá-las enquanto formas contemporâneas da exploração e dominação. Esse imaginário social é a ideologia neoliberal.
O PT é considerado "atrasado" porque se recusa a aderir à hegemonia do ideário e da prática neoliberais, recusando o raciocínio de alguns intelectuais que poderia ser assim resumido: já que não dispomos de uma análise crítica global do capitalismo contemporâneo que nos permita uma compreensão mais clara do que se passa no Brasil, fiquemos com o neoliberalismo como prova de "realismo político" (ressurge agora, com "os suspeitos de sempre", a tese do "realismo político" que presidiu a formação da Aliança Democrática contra as Diretas-Já e que, graças à "gente séria e responsável, que entende de política", nos brindou com Sarney, ex-presidente da Arena-PDS, escolhido pelo PMDB).
No mundo inteiro, os partidos neoliberais têm encontrado oposição de centro e de esquerda. Não temos notícia de que em tais países essa oposição seja desqualificada sumariamente como "atrasada". É, simplesmente, uma oposição e, como tal, respeitada como interlocutora política nos quadros da democracia. No caso do Brasil, porém, essa oposição não é vista, por alguns intelectuais, como legítima e como devendo ser tratada enquanto discordância e divergência políticas. Em vez disto, é imediatamente desqualificada. Não ouvimos a pergunta, óbvia numa democracia: por que os trabalhadores seriam obrigados a aceitar o imaginário hegemônico da classe dominante? Pergunta banal cuja ausência causa espanto quando muitos dos que têm escrito nos últimos dias são intelectuais que se consideram de esquerda. Afinal, um intelectual de esquerda sabe o esforço gigantesco feito pelos trabalhadores contra o fenômeno da alienação pelo qual são levados a fazer suas as idéias e práticas de seus exploradores, vivendo a tragédia da servidão voluntária.
Em lugar de perceber tal esforço, desqualifica-se a posição política dos trabalhadores porque insubmissa à dominação ideológica de classe. Fantástico? Não num país autoritário como o nosso. Assim, longe de tratar o PT como um opositor legítimo com o qual se tem divergências e discordâncias, a "gente séria e responsável que entende da política" lança-o no limbo onde, supõe-se, devem ficar os "subalternos".
O PT opõe-se politicamente à idéia de que o neolibealismo seja a solução econômica, social e política para os problemas de nossa sociedade. E isto, não só porque tem diante de si a situação crítica em que encontram Argentina, Chile e México, nem só porque conhece o empobrecimento inglês e as lutas sociais desencadeadas na França de Balladur contra a vaga neoliberal que soterra o governo Mitterrand, nem, enfim, porque conhece o poderio do complexo econômico-militar formado por um punhado de oligopólios transnacionais. A oposição ao neoliberalismo se deve aos seguintes pontos principais:
a) a política neoliberal, em seus primórdios, instalou-se em países com forte tradição política social-democrata ou voltada para a constituição do Estado do Bem-Estar Social, desmontando-a em consonância com as novas exigências do capital que não só não precisa desse tipo de Estado para acumular-se e reproduzir-se, mas ainda nele vê um obstáculo. Ora, no Brasil, nunca tivemos o estado de Bem-Estar Social, pelo contrário, aqui reina a república oligárquica a serviço dos interesses de uma classe social.
Aqui, portanto, o neoliberalismo sequer possui, no Estado existente, um adversário a combater, não precisa destruir muitos direitos adquiridos pelos trabalhadores, pois estes sequer alcançaram a cidadania no plano dos direitos sociais. Entre nós, a proposta neolibral não é o "moderno" tão decantado, mas a conservação do arcaico poder das oligarquias;
b) a política neoliberal, em seus primórdios instalou-se em países com forte tradição democrática, portanto, onde os direitos estavam consolidados, tornando compreensível que, à medida que seus efeitos se faziam sentir, um a oposição pudesse organizar-se contra ela, a partir a sociedade. Ora, a sociedade brasileira não possui essa tradição, mas, pior do que isto, é atravessada por uma divisão social que bloqueia o próprio advento da democracia.
Como, portanto, esperar que seja agente democrático? E como esperar que encontre forte oposição democrática se a democracia ainda precisa ser criada entre nós? Donde a ilusão de muitos intelectuais que julgam estar navegando a favor da corrente do tempo histórico quando apostam num projeto neoliberal para o país;
c) é preciso, no Brasil, uma reforma do Estado. Esta afirmação, porém, pode ser abstrata, se não indagarmos qual é o Estado a ser reformado e qual a reforma necessária. Uma das marcas mais impressionantes do Estado brasileiro é seu modo de relação com a classe dominante: esta não o vê como um instrumento de poder para auxiliá-la na dominação, devendo, porém, cumprir outras funções políticas e sociais que lhe permitam aparecer como poder público e representativo, mas o vê e o utiliza como poder privado a serviço exclusivamente de seus próprios interesses.
A classe dominante brasileira privatizou o Estado, ou seja, tornou impossível a distinção entre o público e o privado. Collor e os Sete Anões são apenas uma espuma flutuante que esconde as profundezas de uma estrutura que impede verdadeiramente a política, isto é, a natureza pública e simbólica do poder. Se assim é, então o projeto neoliberal de reforma do Estado por meio da privatização das empresas estatais e dos serviços sociais (saúde, educação, habitação, transporte, cultura, etc.) surge, no Brasil, como uma caricatura perversa, uma vez que a "privatização" consiste em passar do monopólio estatal, que regula os preços dos produtos segundo exigências da própria classe dominante, ao oligopólio propriamente privado.
Noutras palavras, como não há no Brasil o que se entende classicamente por sociedade civil –isto é, o mercado como esfera independente do Estado–, uma vez que a classe dominante domina o mercado, graças à ação protecionista do estado, o projeto neolibeal de reforma do Estado e a privatização consistem em impedir, paradoxalmente, a existência da esfera pública estatal propriamente dita como representante dos direitos da maioria.

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