São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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DE ALIANÇAS, ATRASOS E INTELECTUAIS

MARILENA CHAUI

É o lado professoral autoritário que se vê no ataque ao PT
O verdadeiro Príncipe é o que não se alia ao desejo dos Grandes

Sem dúvida, a política brasileira sempre careceu, por razões óbvias, da verdadeira prática da representação, na medida em que a tradição partidária sempre operou com a relação de favor (partidos conservadores), de tutela (partidos populistas), de cooptação dos setores organizados da sociedade (partidos de centro) e de substituição pedagógica (partidos vanguardistas de equerda). Sem dúvida, a primeira modalidade se concretiza no PFL, a terceira, no PSDB, enquanto a quarta espreita o PT. Mas se a prática da representação é um problema geral, caberia aos intelectuais analisá-lo por inteiro, em lugar de exigir apenas do PT que o resolva sozinho e para todos.
Por que a discussão não é trazida a estes pontos? Por que a desqualificação política do PT parece prioritária?
Para tentar uma resposta a esta questão, parece-nos interessante examinar a atitude ambígua que a opinião pública (entendida aqui no sentido restrito de opinião expressa por indivíduos e grupos nos meios de comunicação) estabelece com o PT. A ambiguidade consiste no fato de que aquilo que é apresentado sob a forma de um elogio converte-se, imediatamente, numa crítica. Alguns exemplos podem ilustrar tal ambiquidade:
– diz-se, como um elogio: "o PT é realmente o único partido político brasileiro, no sentido forte do termo". Feito o elogio (pois durante os últimos 20 anos os cientistas políticos afirmaram que o maior problema do sistema político brasileiro era a falta de partidos claramente definidos), imediatamente, é transformado em crítica: "portanto, é totalitário";
– diz-se, como elogio: "à atuação do PT nos parlamentos e no poder executivo revela que é o único partido que leva realmente a sério a idéia de espaço público, o que se vê pela recusa da corrupção". Imediatamente, porém, o elogio se converte em crítica: "portanto, é moralista".
– diz-se elogiosamente: "O PT é o único partido que não titubeia em afirmar que as questões sociais são prioritárias". Imediatamente se conclui: "portanto, é corporativista";
– diz-se o elogio: "o PT é o único partido político que, inegavelmente, possui bases sociais organizadas e luta para que a auto-organização social e popular, sob a forma de associações, entidades de categoria e movimentos, seja ampliada". Donde a crítica imediata: "portanto, é basista e populista, incapaz de operar com a idéia moderna de representação".
Além de ambígua, a opinião pública (sempre em sentido restrito) possui ainda duas outras características, em sua relação com o PT. A primeira delas é o modo como nomeia as divergências e lutas internas do PT: são invariavelmente designadas com a palavra "crise".
Assim, longe de serem vistas como vitalidade democrática, as diferenças e lutas internas do PT são tomadas como "crise" porque, como vimos, o primeiro elogio ao partido desemboca na afirmação de que é totalitário. Em outras palavras, procura-se passar a imagem de um partido no qual as diferenças só poderiam exprimir-se como rupturas e autodissolução! A segunda característica é a naturalidade com que todo mundo –petista ou não-petista, simpatizante ou não-simpatizante, eleitor ou não eleitor do PT– acha que pode e deve opinar sobre as decisões e ações do partido.
Isto, cremos, é o lado mais simpático e interessante dessa opinião pública, pois, ainda que não seja esta sua intenção, reconhece, ao opinar, que se trata de um partido político aberto à sociedade, uma vez que esta se sente perfeitamente à vontade para julgar, avaliar e dar palpites nas decisões e ações partidárias, sobretudo quando os que opinam não são membros do partido. Percebe-se, portanto, que embora se fale em "totalitarismo", "moralismo", "corporativismo", "basismo populista", "crise", há o sentimento difuso de que o PT existe verdadeiramente como sujeito político democrático numa relação de troca e de reciprocidade com o que a sociedade lhe diz através da opinião pública.
Mas, se assim é, como explicar a desqualificação do PT por alguns intelectuais? Cremos que, aqui, um outro componente, já presente naquela opinião pública, torna-se mais forte e exclui o lado simpático e democrático que assinalamos acima. Trata-se do componente autoritário. De fato, muitas vezes, a opinião pública não julga e avalia o PT, mas lhe ensina lições de política, dá-lhe aulas, explica-lhe o que deve fazer e porque deve fazê-lo. É este lado professoral que aparece nos artigos dos intelectuais –e não só nos dos últimos dias, mas em todas as campanhas eleitorais– quando nos ensinam o que é verdadeiramente a política e como o PT está despreparado para ela. Do tom professoral à desqualificação do interlocutor só há um passo. E tem sido dado.
Afinal, um partido cuja modernidade é irrecusável, uma vez que sua ação dirige-se prioritariamente para a criação da sociedade civil como pólo instituinte de direitos, para a afirmação da cidadania sociopolítica dos que são excluídos pelo poderio oligárquico, para a ação (desde a Constituinte) de reforço do poder Legislativo como esfera da representação política que garante a diferença entre o ocupante do poder Executivo e a instância da lei (diferença sem a qual não há democracia), para o reforço dos movimentos sociais como pólo de contrapoder social que impeça a absorção da sociedade pelo Estado (absorção que é a marca do totalitarismo), é um partido que não poderia receber o adjetivo "atrasado", a menos que seus adversários não aceitem a modernidade política.
De fato, o PT tem-se caracterizado pela criação de mediações institucionais (sua própria existência é a melhor prova disso), pelo reforço das mediações institucionais (movimentos populares, sociais, sindicais, etc) e pelo reforço da mediação parlamentar. Aliás, os conflitos entre parlamentares e prefeitos com as direções partidárias, apresentado como crítica ao PT, deveria ser visto, ao contrário, como indício de vitalidade. Que, nos últimos tempos, algumas direções petistas tenham tido dificuldade para compreender as exigências específicas do poder Executivo e do Legislativo não significa que devam ter sempre a última palavra, mas que precisarão superar o impulso ao dirigismo, justamente porque prefeitos e parlamentares possuem mandatos cuja origem vai além dos votos apenas petistas.
O fato de que isto seja percebido como um problema indica, por si mesmo, a percepção dos limites do dirigismo e a necessidade de ampliação do campo de manobra dos representantes. Se a modernidade petista não parece evidente, tratemos, aqui, de explicitá-la.
Inventou-se, no Brasil, primeiro com a oligarquia sem ideário e depois com a mesma oligarquia vestida nos trajes neoliberais, que o Estado desperdiça recursos com as empresas estatais e as políticas sociais. Sabemos, hoje, que não é o que se passa. No caso das estatais, sabemos que são controladas para servir aos interesses de mercado dos grandes oligopólios, impedindo-as de pleno desempenho da função econômica e submetendo-as a procedimentos que ampliam sua estrutura burocrática e diminuem sua capacidade produtiva. Trata-se, portanto, de reestruturá-las para que sejam o devem ser: empresas públicas que prestam serviço ao patrimônio público e aos cidadãos.
No caso das políticas sociais, sabe-se que o Estado nelas investe pouco ou quase nada (a calamidade a que foi submetida a escola pública gratuita e a saúde pública falam por si mesmas), deixando-as ao sabor da clientela "anã" e inchando sua máquina com organismos destinados a satisfazer os interesses econômicos e políticos dos grupos oligárquicos.
Deixa-se de lado, nas falas e escritas dos intelectuais, o verdadeiro desafio econômico posto para um governo petista: como enfrentar o "colapso da modernização", isto é, a forma contemporânea do capitalismo que derrubou os referenciais do pensamento político de esquerda (Estado nacional, imperialismo, crescimento econômico por meio da valorização do trabalho e da criação de empregos, etc)? Eis porque os temas da distribuição da renda (contra os bolsões de miséria), do resgate da dívida social (por meio de verdadeiras políticas sociais), da determinação do modo como o Brasil pode e deve participar da transnacionalização econômica, dos investimentos poderosos na ciência e na tecnologia são prioritários na agenda petista.
Este desafio exige uma política moderna, isto é, democrática, única que, historicamente, mostrou-se capaz de resistir aos processos de exclusão impostos pelas diferentes formas do capitalismo. O que é uma política moderna?
O pensamento moderno da política nasce quando se reconhece que a ação política não está referida à ação cujo fim seria o bem comum da comunidade una e indivisa, mas está referida ao poder numa sociedade originariamente dividida em classes.
Como se sabe, coube a Maquiavel inaugurar o pensamento político moderno, ao pensar a política como lógica das relações de força numa sociedade dividida entre o desejo dos Grandes de oprimir e comandar e o desejo do Povo de não ser oprimido nem comandado. O verdadeiro Príncipe, isto é, o que alcança e sabe conservar o poder, é aquele que não se alia ao desejo dos Grandes (pois estes rivalizam com ele e lutam por tomar-lhe o poder) mas alia-se ao desejo do Povo.
Ora, este desejo se apresenta como puramente negativo: não ser oprimido e não ser comandado. Dizer que a aliança se faz com o desejo popular significa, portanto, que o Príncipe é aquele capaz de dar conteúdo positivo a um desejo sem conteúdo ou simplesmente negativo.
Que significa isto, em nosso caso? Significa, em primeiro lugar, não aliar-se às oligarquias e, mais do que isto, dar uma resposta positiva contra aquilo sobre o quê o desejo dos Grandes se exerce, criando, contra estes últimos, uma verdadeira política de direitos econômicos-sociais. Em segundo lugar, aliar-se com aqueles que, na sociedade, lutam por isso –os movimentos sociais e populares– ou aspiram por isso –a grande massa popular dos não-organizados. Em terceiro lugar, aliar-se àqueles que, no poder, lutam por isso –os parlamentares de todos os partidos políticos que são eleitos como representantes para fazer valer o desejo dos representados, jamais desconsiderando a pluralidade de demandas e de interesses representados, de sorte a manter em evidência os laços do Legislativo com as diferentes classes e grupos sociais.
É esse conjunto de alianças flexíveis, mas claras, que permite dar conteúdo concreto a um projeto de reforma do Estado, pois fica evidente que o Estado deve ser enxugado de todos os aparelhos estatais que reforcem o desejo dos grandes de oprimir e comandar, de todas políticas que impeçam a representação porque operam com o favor, a clientela, a cooptação e a tutela, portanto, de todas as políticas que bloqueiam a instituição de uma república democrática. Em outras palavras, reforma do Estado significa democratização do poder público.
Também fica claro que o Estado deve ser reestruturado e reaparelhado para cumprir seu duplo papel na aliança com o desejo do povo: o do investimento pesado e enérgico nas políticas sociais e na reforma fiscal, e o da negociação permanente com o poder Legislativo como espaço público da representação e da consolidação de direitos. Experiências administrativas petistas ensinaram que o Estado (visto pelo ângulo do poder Executivo) pode ser racionalizado, modernizado, descentralizado e sobretudo pode dar prioridade ao social, desde que os "ralos" por onde escoam os fundos públicos sejam rapidamente localizados, e a localização é simples: estão ali onde o Estado, despojando-se de sua dimensão pública, amplia-se desmedidamente para servir aos interesses de alguns grupos privados. Não serão estes, portanto, que farão uma reforma do Estado nem realizarão a política maquiaveliana, isto é, rigorosamente moderna.

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