São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Ellison volta a ser discutido nos EUA

Ellison nunca se incomodou em criar uma"estética negra"

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A morte de Ralph Ellison na semana passada está servindo como fator de arregimentação para diversos intelectuais dos EUA colocados na defensiva nos últimos 30 anos por correntes radicais do movimento negro.
Em vez de ter sido interpretada como o marco da superação definitiva das idéias de Ellison de integracionismo do negro na cultura universal, sua morte está tendo o dom de reanimá-las num ambiente em que a maioria dos "afro-americanos" parece convencida das teorias separatistas.
"Homem Invisível", o único romance de Ellison (que só ganhou sua primeira edição brasileira em 1990, pela Marco Zero, embora tenha sido considerado desde o lançamento, em 1952, uma das mais importantes obras de ficção do século), é um livro universal.
Ellison nunca se incomodou em criar ou estimular uma "estética negra", como líderes do multiculturalismo defendem hoje em dia. A questão nem se colocava na década de 50, quando ele iniciou sua carreira literária.
Isso não significa que Ellison tenha sido indiferente aos traços distintivos da cultura negra em relação universo norte-americano.
Ao contrário. Pouquíssimos autores na literatura dos EUA foram capazes de condensar em prosa de maneira tão perfeita os aspectos mais relevantes do folclore, da tradição oral, da música e do humor negros como Ellison.
Mas em "Homem Invisível", a narrativa dos escravos se encontra com o surrealismo kafkiano, as lendas africanas são contrapostas à análise freudiana, o jazz é modulado por Richard Wagner, Mark Twain se cruza com William Faulkner.
Embora essa simbiose é que mereça o rótulo de "multiculturalismo", Ellison começou a ser discriminado pelos que mais tarde se apossariam desse conceito a partir do início dos anos 60, quando grupos radicais do movimento pelos direitos civis nos EUA estabeleceram o chamado "poder negro".
Ellison foi acusado de ser um novo "Pai Tomás", referência ao personagem da novela de Harriet Beecher Stowe (1852) que se transformou em sinônimo do negro servil aos brancos, que faz tudo para agradá-los.
O próprio estereótipo aplicado a Tomás já é injusto porque o personagem de Stowe, no texto original, na verdade era um herói da sua raça. A tentativa de transformar Ellison em traidor da negritude foi ainda mais absurda mas encontrou ressonância nos tensos anos pós-60.
"Homem Invisível" se antecipou e deu respostas aos principais temas da comunidade negra no final do século 20. Mas sua solução para eles não era o separatismo, como defendem os que se intitulam multiculturalistas, e sim a participação do negro, em igualdade de status com os de outras raças, na formação de uma cultura americana honesta.
O embuste multiculturalista é ainda maior: o padrinho literário de Ellison, o crítico e romancista Richard Wright (1908-1960), foi eleito como o precursor do movimento. Talvez porque Tomás Grande, personagem de seu livro "Native Son" (1940), corte a cabeça de uma moça branca.
Wright foi o mentor intelectual de Ellison e, se tivesse vivido até 1968, muito provavelmente teria ficado com seu afilhado, com James Baldwin (1924- 1987), com Robert Hayden (1913-1980) e com outros expoentes da literatura negra norte-americana que foram rechaçados pelos extremistas, dos quais não saiu até hoje nenhum verdadeiro talento reconhecido como tal.
A reabilitação de Ellison começou, felizmente para ele, antes da morte. Em 1990, Charles Johnson se tornou o primeiro negro desde o próprio Ellison a ganhar o Prêmio Nacional do Livro por um romance ("Middle Passage").
Em seu discurso ao receber a honraria, Johnson a dedicou a Ellison e disse: "Antes do final deste século, vamos ter uma ficção negra americana que será ellisonesca e que virá quando as pessoas se moverem da vida da reclamação estreita para a ampla celebração da vida".
Em 4 de março último, quando completou 80 anos, Ellison recebeu em seu apartamento na fronteira do Harlem com Washington Heights, em Nova York, um expressivo contingente de intelectuais negros que lhe prestaram respeito.
Entre eles, o pistonista Wynton Marsalis (motivo de especial prazer para Ellison, que na juventude ambicionou a carreira musical e se tornou um razoável pistonista amador), o chefe do departamento de estudo afro-americanos da Universidade de Harvard, Henry Louis Gates Jr., os romancistas John Edgar Wideman e Leon Forrest, o poeta Michael Harper e o crítico Shelby Steele. Não poderia ter tido melhor companhia em seu último aniversário.
Em outra festa pelos seus 80 anos, em 1º de março, no restaurante Le Périgord, no East Side de Nova York, um de seus melhores amigos, Albert Murray, fez o brinde ao aniversariante e relembrou um dos poucos poemas que Ellison escreveu: "A morte não é nada/ A vida não é nada/ Como são lindos esses dois nadas". Para Ellison, a vida foi muito e a morte está sendo igual, ao detonar a consciência integracionista da comunidade negra dos EUA.

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