São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Brasil projeta 'míssil' anticâncer

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Cápsulas inteligentes capazes de achar as células que devem destruir são o sonho de quem pesquisa o combate ao câncer. O Incor (Instituto do Coração, de São Paulo) chegou mais perto dele com um experimento engenhoso.
Os resultados foram divulgados na semana passada por Raul Cavalcante Maranhão, chefe do Setor de Lípides do Incor. Ele apresentou o trabalho semana passada no 25º Congresso da Sociedade Internacional de Hematologia, em Cancún (México).
O nome do invento, um tipo artificial de colesterol, é pouco esclarecedor: "microemulsão que se assemelha à LDL". Sua patente foi pedida pelo Incor, há um ano, nos Estados Unidos e na Europa.
Simplificando, trata-se de uma minúscula embarcação (seria possível enfileirar 10 mil delas em um milímetro). A idéia é usá-la para despejar veneno sobre o inimigo, mas sem provocar muita poluição pelo caminho (veja quadro à esq.).
O inimigo são as células cancerosas. No caso da leucemia, células do sangue que começam a se multiplicar desordenadamente.
O papel de veneno cabe às drogas usadas em quimioterapia. Elas têm o poder de destruir as células doentes, mas são muito tóxicas. Ou seja, acabam matando muitas células inocentes.
Os efeitos indesejados podem ir da queda de cabelos à morte do paciente. Para diminuí-los, os pesquisadores tentam imitar uma solução de engenharia natural para transportar energia pelo corpo, as lipoproteínas (leia texto abaixo).
O interesse dos oncologistas (pesquisadores de câncer) pelas lipoproteínas aumentou muito depois de uma descoberta da dupla norte-americana Michael Brown e Joseph Goldstein (ganhadores do Nobel de Medicina de 1985).
Eles verificaram que as células atacadas por um tipo de leucemia, a mielóide aguda, tinham 3 a 100 vezes mais receptores (portas de entrada) para a lipoproteína LDL, mais conhecida como mau colesterol por sua participação nas doenças cardíacas.
Como têm mais receptores, as células doentes capturam mais LDL do sangue.
Esta característica faz da LDL um forte candidato a míssil antileucemia. Com duas condições: que seja fácil de obter e que se consiga recheá-la com veneno.
Os cientistas tropeçaram já no primeiro degrau. Há muito pouca LDL no organismo (todo o sangue de uma pessoa daria no máximo 10 g). E é muito difícil separá-la.
Aí entra a microemulsão do Incor. Por ser artificial, ela pode ser produzida em escala muito maior. Faltava só provar que elas se comportam como sua prima natural.
Em 1993, trabalho da equipe de Maranhão na revista norte-americana "Lipids" mostrou que a LDL artificial também possuía a chave para abrir células. O passo seguinte era demonstrar a opção preferencial pelas células leucêmicas.
O experimento
É este o resultado que Maranhão apresentou em Cancún. Foram estudados no experimento 21 pacientes, 14 com leucemia mielóide aguda (AML, na sigla em inglês) e 7 com leucemia linfóide aguda (ALL).
Só as células atacadas por AML têm aumento de receptores para LDL. Com isso, os doentes com ALL formam um grupo de controle sob medida para o teste.
Se fossem pessoas saudáveis, por exemplo, sempre se poderia argumentar que as diferenças na absorção da LDL artificial poderiam decorrer de fatores relacionados com a doença.
Todos receberam injeções de uma LDL sintética marcada radiativamente. Como um sino no pescoço da vaca, a substância radiativa permite localizar a LDL em seu trajeto pelo corpo.
As imagens da concentração da LDL injetada em diferentes órgãos não deixam dúvida.
Nos pacientes com mais receptores (AML), a LDL foi direto ao ponto. Rapidamente, 66% dela se concentrou nas medulas ósseas, verdadeiros depósitos de células vitimadas pela leucemia.
Nos que têm menos portas de entrada, a candidata a míssil ficou perdida, circulando com o sangue. Também se observou grande concentração no fígado, fundamental no metabolismo das lipoproteínas.
Conclusão: a microemulsão é de fato um bom veículo de transporte. Desde, é claro, que se consiga carregar seus porões com o veneno certo. E isto é trabalho para "vários anos", alerta Maranhão.

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