São Paulo, terça-feira, 26 de abril de 1994
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'Peer Gynt' sonha com o teatro impossível

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu já pensei uma vez em filmar a peça "Peer Gynt" de Ibsen. Cheguei a escrever um roteiro em 1983, quando eu me debatia com a habitual loucura a que o cinema nos leva, esta dança macabra entre o dinheiro, o desejo poético e as dificuldades técnicas.
Ou você cai na mesquinhez comercial de fazer filminhos oportunistas ou sobe no sonho louco da obra definitiva, cobrindo tudo, o mundo todo, a arte toda.
Pontas de um mesmo punhal sem cabo que nos fura, o cinema é a faca de gumes loucos, entre o possível e o desejado. Como, aliás, é o personagem Peer Gynt de Henrik Ibsen e como é a peça, metáfora de si mesma.
Agora, o "Peer Gynt" estreou no Rio, com direção de Moacyr Góes, no teatro Glória. Um trabalho sério, mas que me deixou insatisfeito. No entanto, saí me perguntando se, além dos problemas de produção, a responsabilidade seria apenas do encenador, ou se a culpa é do próprio limite do teatro para corporificar este texto máximo.
Vendo a peça, que conheço tanto, palavras e versos que voam como alces entre fiordes, personagens mitológicos em ação desenfreada, os atores me pareceram trôpegos, se debatendo entre as paredes do palco como diante de uma tarefa impossível. Se fosse dança, ou ópera, teria funcionado?
Peer Gynt é um herói da linhagem mítica de Till Eulenspiegel, parente de Puck e de nosso Macunaíma.
Começa como um mentiroso de aldeia, um Malazartes traquinas, que engana amorosamente a querida mãe Ase, com quem mantém uma ligação de eterno retorno, rouba a noiva de um burguês, foge para a floresta, seduz a filha do rei dos duendes Troll, encontra-se com o monstro Boyq, uma encarnação mítico-folclórica da inércia pública, o eco do Eu, a voz do Grande Outro que mata a aventura (imperdoavelmente radiofonizado pela voz da Marilia Pera, em tom de loucura de aeroporto por quê?), torna-se o pai de um duende, deformado como um Caliban norueguês, volta até a casa, encontra a mãe morrendo e faz a cena mais linda do teatro moderno, chicoteando cavalos imaginários e transformando o leito de morte da mãe numa carruagem passando pelas paisagens nórdicas, foge da única e eterna mulher que o amará para sempre, Solveig, amante pura, a realidade do amor, o contorno do possível, foge sempre desta felicidade que o amedronta e parte para o mundo, (isto, em 1867) para o mundo que o capitalismo industrial crescente ampliava terrivelmente no "horror" cada vez maior que Joseph Conrad veria em 1902.
Peer Gynt parte num périplo louco e "rimbaldiano" pelos três continentes e adere em desespero crítico a tudo aquilo que o romantismo odiava; vai prosperar nos Estados Unidos como mercador de escravos, vende ídolos para os chineses, quer ser imperador do mundo e insufla a Grécia contra a Turquia ao mesmo tempo que emprestaria dinheiro aos turcos, é roubado pelos sócios e fica na miséria, cai num deserto, seduzido por uma maometana, enfia-se num hospício do Cairo onde um médico louco se degola a sua frente, foge e salva-se com a ajuda de outro náufrago (oh, presença maior do grande ator Italo Rossi!), volta à cidade natal para se ver transformado numa lenda, tem de se haver com a "Morte" que quer fundi-lo na caldeira das mediocriadades gerais e reencontra a mãe-amante Solveig, que o esperou por todo o tempo.
"Peer Gynt" foi escrita no limite fino da navalha entre o nascente "naturalismo científico" de Zola e a noite do romantismo.
Isto fez dela uma dessas "peças impossíveis", como outras da história do teatro, peças como "O Sonho" do Strindberg, um pouco "Baal" (que, dizem, Moacyr Góes montou muito bem) e como a própria "Tempestade" –peças que vivem entre a literatura e o palco, onde as personagens são transparentes, habitam uma zona etérea, diáfana e que se estragam quando são encarnados por meros atores.
Talvez "Peer Gynt" seja mais para ler do que para ver, como já se disse de muita coisa de Shakespeare.
Peer Gynt é muito mais que um mentiroso de aldeia, ou um porra-louca picaresco, como já foi erroneamente interpretado. Peer é um astronauta metafísico, um norueguês voador que parte para desafiar a mediocridade do mundo sem se cansar. Ele é uma metáfora da própria fronteira entre o Espírito hegeliano e a ciência do século 19. É uma uma revolta louca contra a própria finitude da arte. Peer, como Ibsen, queria um milagre, queria atingir uma região impossível da poesia.
Nas peças posteriores é que se forma o Ibsen mais conhecido, o Ibsen "moderno" das denúncias e da análise naturalista.
Contudo, ele sempre manteve queimando, por baixo de seus personagens de salões vitorianos, barbas e sobrecasacas, a maldição dos loucos escandinavos (vejam Strindberg). Sob os Borkmans e Gabblers, faiscava a maldição dos duendes das florestas e os demônios gelados dos fiordes.
Ibsen nunca se satisfez com o cientificismo naturalista como fim: sempre o viu como casca onde a doideira fervia por baixo. Sob as salas de jantar dos Alving queimava a sífilis. Aí estava a genialidade de Ibsen e isso fez dele uma espécie de antiWagner, que sob a capa do infinito romântico alemão, escondia uma "realpolitik" no mundo da glória e do poder dramático.
Ibsen estava na soleira do mundo moderno, mas ainda com a fome de um absoluto romântico. Sua utopia contudo não resplende em relâmpagos nem trovões, nem em valquírias se erguendo contra o céu sublime.
Ibsen cria uma utopia crítica do mundo industrial e injusto que se criava a sua frente. Isto dá a "Peer Gynt" um clima de peça épica de "terceiro mundo", porque a Escandinávia era nesta época uma praia longínqua da Europa, distante de Paris e Londres.
"Peer Gynt" é uma peça imperfeita: é de uma imperfeição por via de sua genialidade, de sua ansiedade de voar por cima da mediocridade pública do século 19.
"A obra de arte tem de ser imperfeita", me disse uma vez o Nelson Rodrigues, e "Peer Gynt" tem está imperfeição genial que tenta tudo salvar, tudo epicamente criticar.
Há algo de Rimbaud em Peer Gynt, esta personagem que delira e poetiza a mentira e vai traficar escravos numa paródia contra si mesmo, saindo da pele do Macunaíma nórdico para a de um herói metafísico e autocrítico que se destrói na sordidez em busca de uma grandeza.
Peer é antes de tudo contra a pequenez do mundo. Peer é Ibsen, em seu romantismo político.
É interessante como ele e Brecht começaram semelhantes; "Baal", "Tambores na Noite" e "Selva das Cidades" também deram lugar a um aparente racionalismo mais maduro.
Se "Peer Gynt" é imperfeita é porque é impossível uma crítica ideal do mundo, a menos que se parta para um Walhalla Wagneriano.
Eu pensei em 1983 em filmar "Peer Gynt" (eu, pobre louco da aldeia carioca!) e parei porque (além da falta de grana, claro...), por mais abstratas que fossem as imagens, nunca chegariam à impalpável essencialidade dos seres verbais de Ibsen.
"Peer Gynt" são palavras. "Peer Gynt" devia voltar de costas na rena mágica e relançar um romantismo contra nossa prisão racionalista.

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