São Paulo, quarta-feira, 27 de abril de 1994
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Sociedade brasileira carece de rancor cívico

MARCELO COELHO

Da Equipe de ArticulistasFaz dez anos do movimento das diretas-já. Dez anos? Como tudo passou rápido!
É banal dizer que dez anos passam depressa: trata-se de sensação subjetiva, fundada na inexatidão da memória, na rotina, no desperdício da vida.
Dez anos depois do movimento das diretas-já, o tempo parece ter corrido rápido demais também para o Brasil. Foram dez anos perdidos? Desconfio que sim, que foram desperdício coletivo.
Nada pior do que evocações nostálgicas. Os comícios pró-diretas eram muito bonitos, sem dúvida. Mas falar em civismo, em mobilização popular, em voz unânime da nacionalidade, soa desafinado hoje em dia.
Esta a maior diferença, a maior amargura que resulta da passagem dos dez anos. Pois no movimento das diretas-já ocorria um fato raríssimo: tratava-se da coincidência entre a opinião dos intelectuais e a opinião da população.
A esquerda, os intelectuais, os estudantes, os jornalistas, amargaram anos e anos de conformismo popular. Enquanto lutavam pela democracia, o "povão" admirava Médici. Ninguém, exceto os segmentos sociais acima citados, importava-se com os direitos humanos, com o habeas-corpus, com o AI-5, com a tortura.
Repentinamente, juristas passaram a ser aplaudidos em praça pública. Os Grandes Bacharéis –Sobral Pinto, Dalmo Dallari, Goffredo da Silva Telles– tornaram-se heróis. Para não falar de Raymundo Faoro, grande intelectual também.
Nos comícios das diretas-já acontecia uma coisa curiosa. Você ia encontrar o "povo" –e não parava de topar com amigos da faculdade, com conhecidos do bairro. Era um acontecimento social, mais para Vila Madalena do que para Vila Nhocuné.
Discuti certa vez o fato com um colega. Ele dizia que os comícios das diretas tinham sido manifestações de classe média, e que o "povão" não estava presente. Dava como argumento o fato de que nós, estudantes então, encontrávamos professores, primos, amigos, com a mesma facilidade que teríamos na Sala Cinemateca, no MIS ou num barzinho do Butantã.
Meu contra-argumento pretendia-se lógico e científico. Dada a enorme concentração de pessoas num comício, e dado o fato de que você fica circulando entre a multidão, um número imenso de rostos está exposto aos seus olhos. Você vê mais gente, num dia de comício, do que em muitas semanas de barzinhos.
Natural que, estatisticamente, você tope com pessoas conhecidas na multidão. A frequência dos reconhecimentos e dos encontros com amigos não diminuiria, assim, o aspecto de massa do evento. Mesmo porque a memória registra menos os rostos anônimos da multidão do que o rosto dos amigos ali presentes.
Ainda assim, mesmo com esse argumento, desconfio dos comícios pelas diretas-já. Não importa que o meu colega ou eu tivesse razão. O fato é que tudo se baseava numa ilusão ideológica: a de que "povo" e "intelectuais", de que Vila Madalena e Vila Nhocuné, estavam-se dando as mãos.
Logo as ilusões se dissiparam. A morte de Tancredo Neves foi transformada em tragédia nacional. Só os xiitas e a Folha denunciavam a farsa conciladora, o acerto de elites, que era a candidatura Tancredo.
Não importa: as mesmas multidões que se congregavam a favor de um princípio abstrato –eleições diretas para presidente– choravam a morte de Tancredo Neves. As esperanças políticas acham sempre aquilo que estão a procurar.
O pior não foi isso. O pior é a complacência da sociedade brasileira com os políticos representativos do regime militar. Tratava-se de verdadeiro escândalo.
Um exemplo. Quem sabe quais são os nomes daqueles que votaram contra as diretas? Quem, hoje em dia, se importa? Sarney foi aguerrido adversário das diretas. Maluf, claro, foi também.
Não é escandaloso que, depois de negarem ao cidadão o direito de escolher seus representantes, esses mesmos políticos venham pedir votos dos cidadãos? Como é que podem bajular a vontade do eleitorado, orgulhar-se de terem sido eleitos, quando negavam há não muito tempo a capacidade que o brasileiro tinha de votar?
Quem foi contra as diretas-já deveria ter sido cassado. Ao contrário, é eleito pelos cidadãos.
Falta rancor cívico na sociedade brsileira. Todo mundo é desculpado. Não me supreenderei se Fernando Collor for reeleito presidente qualquer dia. Os adversários das diretas-já vão muito bem, obrigado.
Onde estão as listas dos traidores da vontade popular? Onde poderemos ver o nome dos esbirros do autoritarismo, dos aproveitadores que hoje pedem voto com a mesma cara-de-pau com que obedeciam aos generais de plantão?
Ninguém sabe. Ou só sabe mais ou menos. Tudo se desculpa. Não há rancor. As indignações duram um dia. Os cassados no escândalo do orçamento seriam facilmente reeleitos. Sarney hoje desperta simpatias. Amanhã será a vez de Collor.
O eleitorado brasileiro é o responsável. É claro que Pelé tinha razão: não sabe votar. Não sabe votar porque não sabe ler, porque durante 20 anos votou pouco, porque gosta do lixo veiculado pela Rede Globo.
No documentário proibido da BBC sobre a Rede Globo, entrevistava-se um casal de favelados. Os dois só assistiam ao "Jornal Nacional". O marido disse que, nas eleições presidenciais passadas, a Globo manipulou o noticiário a favor de Collor, contra Lula. Sabia disso. E daí? Continua assistindo o "Jornal Nacional".
Chegou-se a um círculo vicioso. O analfabeto vota nos coronéis que promovem a continuidade do analfabetismo.
Era bem fácil o tempo em que se falava de diretas-já. Como se, uma vez varrido o dispositivo constitucional autoritário, a vontade popular se manifestasse puramente.
Quem era de esquerda e democrata acreditou, há dez anos, na ficção de que havia massas oprimidas, amordaçadas, ansiosas por dirigir os destinos do país. Acreditou no "vox populi, vox Dei". Eram doces tempos.
Daí a surpresa que temos ao ver passados dez anos de toda aquela movimentação. Dez anos depois, patinamos no mesmo pântano. O tempo não passou. Passaram apenas as ilusões.
Intensificou-se, também, o tancredismo conciliador geral. Fernando Henrique Cardoso –afinal de contas,um cassado pelo AI-5, um exilado– alia-se ao PFL de Antônio Carlos Magalhães. Ó conciliação das elites! Ó modernidade! Ó desmemória!
Vergonha de uma sociedade sem caráter. De um eleitorado sem rancor e sem informação. O eleitorado esqueceu-se de tudo: adorou Sarney durante o Cruzado, execrou-o, perdoou-o. Os brasileiros parecem ter a vocação de serem escravos, de dizerem sempre sim sinhô, sinhozinho. Merecem o governo que têm. Mostram um desprezível amor a quem os despreza.
Diretas-já? Comícios grandiosos? Impeachment? Foi tudo muito relativo.

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