São Paulo, sábado, 30 de abril de 1994
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'Bienal Brasil' exalta experiência frustrada

FERREIRA GULLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tese de que a contribuição original da arte brasileira à arte do século 20 se dá no final da década de 50 e começos da de 60 através, principalmente, das obras de Lygia Clark e Hélio Oticica não é destituída de fundamento.
Efetivamente, como a crítica em geral admite, o movimento neoconcreto, ao desbordar dos princípios estabelecidos por Max Bill e rejeitar o esquematismo teórico de Waldemar Cordeiro, em favor da invenção, abriu caminho para expressões novas que anteciparam certas manifestações da vanguarda na Europa e nos Estados Unidos.
Isso é verdade. Cabe considerar, no entanto, que as inovações neoconcretas –especialmente as de Lygia e Oiticica– realizam-se nos limites da linguagem construtiva, herdada da arte concreta, e conduzem rapidamente à desintegração dessa linguagem.
Os "Bichos" de Lygia são de fato seres novos no universo da arte mas ela logo os abandona, e os passos que dá em seguida levam-na para fora desse universo. Lygia reconhece que, desde então, deixou de ser artista, e não por acaso vai utilizar seus experimentos sensoriais como terapia para neuróticos e psicóticos.
Sem atingir o mesmo grau de radicalismo, Oiticica abandona a construção dos "relevos espaciais" (não objetos) para se dedicar a tentativas conceituais, às vezes de discutíveis resultados, como "Parangolé" e "Rijanviera".
Os relevos espaciais é que constituem a sua real contribuição, já que são, do mesmo modo que os "Bichos", obras realizadas e não apenas experimentos inconsistentes apoiados mais no discurso verbal que na obra propriamente dita.
Reduzir, portanto, a Lygia e Oiticica a contribuição brasileira à arte contemporânea seria, no mínimo, cometer injustiça com numerosos outros artistas e com a própria arte brasileira.
Se é verdade que nossos artistas e teóricos do modernismo não apreenderam a fundo as verdadeiras questões implicadas nas tendências da vanguarda européia que os influenciaram, é certo também que essa ingenuidade evitou que suas obras se tornassem cópia servil do modelo importado.
Conta Mário de Andrade que, àquela época, ao ouvir num concerto a interpretação de uma música brasileira, comentou com Manuel Bandeira que havia alguma coisa de fanho na execução. Ao que o poeta respondeu: "Esse fanho é que somos nós".
Às vezes, o excesso de exigência na avaliação da contribuição brasileira à arte mundial revela certa submissão a conceitos discutíveis e estreiteza de julgamento.
Isso se torna mais grave na época atual quando, até certo ponto, a arte e a crítica brasileiras atingiram o nível da atualidade internacional.
Esse erro de avaliação pode ser explicado. Resulta, em parte, da visão simplista do problema estético fundada numa errada noção do novo.
Em lugar de entender o novo como consubstancial à própria elaboração da obra de arte, aceita-se o estereótipo gerado pelo vanguardismo "faisandé" das últimas décadas, que consagra a experimentação pela experimentação.
Não importa se dela resulta alguma coisa: basta que "rompa" com a última moda estética. Desconhece-se o fato de que o novo nasce da assimilação, elaboração e superação dos elementos estéticos, e só se consuma na realização da obra nova.
Não obstante, hoje, certa crítica exalta como novo o que não passou de experiência frustrada. Esquece-se de que, em termos de arte, a idéia mais audaciosa e original, da qual não resulte obra alguma, não vale nada.

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