São Paulo, sábado, 30 de abril de 1994
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Dorival Caymmi completa 80 anos hoje

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O compositor baiano Dorival Caymmi falou tanto em público ao longo deste mês que o mundo já sabe que ele está fazendo aniversário. Mas não custa repetir, sobretudo no dia do nascimento do grande totem da MPB. Caymmi completa hoje 80 anos.
Vai comemorar com filhos e netos em um restaurante no Rio mesmo. "Minha expectativa de vida é 120 anos", diz.
Ele nasceu em Salvador em 30 de abril de 1914. Vendeu barbante, fez biscate e, aos 17 anos, fundou o grupo Três e Meio para veicular suas canções. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1938, se acariocou e lançou as bases harmônicas do violão bossa-nova.
Nos últimos 64 anos, segundo seus próprios cálculos, compôs 101 músicas. Seu "songbook", lançado na última segunda-feira pela editora Lumiar, registar 98.
O compositor deixou de fora as três que fez para o Três e Meio: a toada "O Sertão", a marcha "Lucila" e a batucada "A Bahia Também Dá". Afirma que são muito infantis. Pela última, o Três e Meio ganhou em 1931 um abajur cor-de-rosa, primeiro prêmio de um concurso de Carnaval.
Caymmi é um assunto inesgotável falando de outro. Nesta entrevista, feita há uma semana, no seu apartamento do edifício Caravaggio (rua Souza Lima, Copacabana, Rio) revela seu gosto erudito.
Define sua maneira de compor, batucando mentalmente um refrão, como figurativismo (ele também pinta). Sem nacionalismo, diz que ouviu a música do compositor norte-americano George Gerswhin (1898-1937) antes do brasileiro Villa-Lobos (1887-1959)
Compara seus acordes tonais alterados à "seconda prattica" (estilo de canto dramático que aboliu a polifonia e criou a ópera no século 17) do compositor italiano Claudio Monteverdi (1567-1643).
Conta como fez o "ponto" para Camen Miranda em "O Que é que a Baiana Tem", que ela cantou no filme "Banana da Terra" (1938). E não se mostra lá muito entusiasmado com o novo som da Bahia, tipo timbalada e Olodum.
Obra
Não chega a ser uma. É uma reunião de canções gravadas, procuradas. Em termos de número, não tenho posição para competir com muita gente. Pelo que está feito e a qualidade, é satisfatória. Cumpriu a finalidade de agradar. Sou do início da era tecnológica.
O começo
Minha primeira música foi a toada "O Sertão", com versinhos ingênuos sobre São João. Eu tinha 16 anos. Não tinha previsão de que seria um profissional. Sobretudo numa época em que não havia tecnologia em Salvador. A rua sempre me trouxe o resumo de toda a vida da cidade.
Pintura e música
Minha música sempre foi figurativa. Vejo a música como um quadro, uma composição geral em que o fator humano é pronderante. Pinto também assim.
Método de compor
Não componho no violão. O instrumento nunca é essencial para a criação. Em geral é a palavra, a articulação do canto. Faço uma melodia de memória e a seguro de menória. Fui impedido de estudar música por pessoas como Villa-Lobos. Diziam que eu ia ser enquadrado em um sistema musical e perder a esponteidade.
Minha fórmula tem três elementos – composição, canto e acompanhamento – num conjunto coeso. Vou cantando, acostumando o ouvido, criticando o enunciado das palavras. Daí passo a acompanhar.
Harmonia
Criei acordes espontaneamente. Em "O Mar" (1943), aquela modulação que está no arranjo do Radamés Gnattali eu tirei no violão pensando no ir e vir das ondas. O acorde sobe, desce, modula é a barra das ondas na praia. A harmonia tem uma ligeira alteração que eu não sabia anotar. O arranjo de Radamés é impressinista, mas ele sentiu o ponto de vista do autor.
Influência erudita
Ouço muito música erudita, vou a concertos, assisto a muita ópera. Quando começei a compor, nem conhecia Ravel e Debussy porque não chegava ao meu alcance na Bahia. Na década de 40 me tornei frequentador de concertos. A leitura também ajuda muito, saber de onde provem o canto lírico. Estudar Monteverdi, Palestrina, Corelli. A fórmula da minha música é primitiva como a do século 17.
Gershwin e Villa-Lobos
Ouvi a música de Gershwin antes de Villa-Lobos, pelo cinema falado, ainda em Salvador. As harmonias da "Rhapsody in Blue"
Carmen Miranda
Dizem que ensinei os gestos que fizeram famosa a Carmen. O talento era dela. A verdade é que em "Banana da Terra" eu fiquei atrás das câmeras fazendo gestos para mostrar a Carmen quais eram os elementos do vestuário da baiana, que ela não sabia. Fui o "ponto" de Carmen Miranda.
Monteverdi
Gosto de canto primitivo, o das origens da ópera. Como a camerata florentina, que deu origem ao canto lírico. Monteverdi procurava a beleza da voz humana em todas as gradações. Dizia que a música é serva da poesia. Acho discutível. Prefiro achar que música e poesia são unidas, não como um par de vasos de porcelana, mas como macho e fêmea, um compõe o outro.
Compositores favoritos
Todos os compositores deixam um rastro de prazer na gente. Gosto de toda a história da música, até de canto gregoriano e da música barroca tocada com instrumentos primitivos, os impressionistas Ravel e Debussy.
Mas um dos meus favoritos é Gabriel Fauré (1845-1924). Tenho predileção pelo "Prelúdio, Coral e Fuga", de César Franck, que me toca profundamente. Se bem que há Wagner e as belezas da construção da linha melódica aparentemente escondida.

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