São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Lula passa de incendiário a conciliador

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A perspectiva de vitória na eleição presidencial força o PT a conviver com uma incômoda novidade: Luiz Inácio Lula da Silva, 49, seu candidato, troca gradativamente o discurso esquerdista por uma retórica que pende para a centro-esquerda.
"Serei o presidente de toda a sociedade", diz o Lula-94, que será oficializado hoje candidato do partido ao Planalto. Ele está convencido de que perdeu para Fernando Collor, em 89, porque o adversário espalhou o temor de que o PT faria um governo à moda da antiga União Soviética.
O "novo" Lula irrita os radicais do PT e inspira desconfiança no empresariado. Ele quer convencer o militante petista de que radicalismo não ganha eleição. Deseja também provar aos empresários que sua reciclagem ideológica não é mera estratégia de campanha.
Faltando cinco meses para a eleição presidencial, o candidato do PT é um enigma ideológico. Sua biografia política denuncia a existência de pelo menos três Lulas, num intervalo de 15 anos: o alienado, o incendiário e o conciliador.

Julho de l986, sede do PT, Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Em entrevista à Folha, Luiz Inácio Lula da Silva prega a convocação do Exército para desarmar fazendeiros e garantir a desapropriação de terras.
Lula disse que o governo deveria "utilizar as Forças Armadas para efetivamente garantir a implantação da reforma agrária... Para não permitir que uma entidade fascista como a UDR pudesse cantar de galo como está cantando".
Fevereiro de 93, na desconhecida Rio Verde, no interior de Goiás. Reunidos num galpão, cerca de 50 filiados da UDR fazem silêncio para ouvir um Lula bem mais manso.
Os fazendeiros falaram primeiro. E em resumo, disseram o seguinte: na eleição de 89, doaram bois para financiar a campanha de Collor. Receavam que, na presidência, Lula lhes confiscasse as terras.
"Não vou mexer em terra produtiva", disse o Lula–94, já em plena campanha. "No Sul, não se mexe em terra com menos de 500 hectares, mesmo que seja improdutiva. Na região central, não tocaremos em terras com menos de mil hectares. No Norte, nada abaixo de 1.500 hectares".
Lula foi a Rio Verde a convite do agrônomo José Bicudo, filho do deputado petista Hélio Bicudo (SP). Deveria apenas visitar um projeto agrícola tocado por missionários americanos. Saiu de lá com o apoio dos fazendeiros locais.
O candidato petista deu muitas voltas antes de adotar o pragmatismo. Houve, na década de 70, um Lula alienado, que se permitia elogiar a "determinação" de Hitler.
Um outro Lula, visto pelos adversários políticos como incendiário, defendeu, em 86, a "luta armada" e a estatização de todos "os meios de produção".
Na mesma entrevista em que atacou a UDR, o Lula que hoje atropela o próprio passado na caça aos votos declarou: "A classe dominante não vai deixar a gente chegar ao poder pela via do voto".
Para o Lula de então, barba desgrenhada, 10 quilos mais magro, a "direita" poderia tentar manter o poder "através do uso de armas".
Ao opinar sobre a reação da sociedade à situação hipotética que criou, Lula derramou-se em radicalismo: "Aí eu sou amplamente favorável a que haja resistência da população. Igualmente armada."
O petista daquela daquela época enxergava no PT uma tendência natural para o radicalismo. "O grave não é ser radical", dizia. "O grave é ser conformado, subserviente, submisso".
Hoje, barba aparada, 87 quilos distribuídos em um corpo de 1,70 m de altura, guarda roupa mais fornido, Lula amacia o discurso. "Quero um programa de governo realista, contendo apenas aquilo que cabe ao governo executar".
Lula acha que o PT perde-se em discussões inúteis, como a da legalização do aborto e do casamentos entre homossexuais. "Isso não é da competência do governo", diz, de olho nos votos da Igreja.
Na campanha de 89, Lula dava um boi para entrar numa briga. Defendia, sem titubeios, a suspensão do pagamento da dívida externa e a estatização de praticamente toda a economia, incluindo o sistema bancário.
Hoje, dá uma boiada para sair da confusão. Acha que deve-se "negociar politicamente a dívida" antes de se pensar em moratória e admite privatizar empresas "não–estratégicas".
No ano passado, em reunião com empresários paulistas, disse a seguinte frase: "Essa discussão (sobre privatizações) é besta. Quando eu assumir o governo, tudo de bom que poderia ser privatizado já vai ter sido vendido".
O candidato rejeita a idéia de rever privatizações. "Se houver irregularidades cabe à Justiça resolver, não ao governo", esquiva-se.
Ao contrário da improvisação da campanha de 89, Lula pauta seu comportamento por pesquisas de opinião. Uma delas, encomendada pelo PT, lista os 30 temas que o brasileiro acha importantes.
Os assuntos que chamam menos atenção são justamente os que causam mais barulho dentro do PT: moratória da dívida e privatização estão no pé da lista, com menos de 2% de interesse. Emprego e miséria estão no topo da relação, com taxa de interesse acima de 70%.
Se vencer as eleições, Lula será um presidente singular. Na aparência, é preciso retornar ao século passado, nos primórdios da República, para pinçar duas remotas semelhanças. A exemplo de Lula, Deodoro da Fonseca (1889 a 1891) e Prudente de Morais (1894 a 1898) exibiam barbas fartas.
Em matéria de (falta de) escolaridade nenhum candidato se equipara a Lula, homem de primeiras letras. Os erros de português compõem o único ponto imutável de seu discurso. Lula costuma torturar a língua com expressões como "menas" e "cidadões". Compensa a deficiência com uma notável rapidez de raciocínio.
No campo ideológico as comparações são quase inviáveis. Quem talvez mais se aproxime de Lula, numa analogia imperfeita, é o ex-presidente João Goulart, apeado do poder pelos militares em 1964, depois de suceder a Jânio Quadros. Goulart era tido como nacionalista de esquerda.
Antes de assumir o tom exaltado dos anos 80, Lula oscilou entre a simples desinformação e a mais profunda alienação política.
Quando adolescente, chegou a usar um broche de campanha de Adhemar de Barros, o político cuja fama deu vida ao bordão "rouba, mas faz".
Lula não era partidário de Adhemar. Pendurou o broche na lapela porque achou-o bonito. Aos 34 anos, quando já era um líder sindical, declarou-se admirador de personalidades tão distintas quanto Ghandi, Fidel Castro, Mao Tse-Tung, Che Guevara, Adolf Hitler e o aiatolá Khomeini.
Sobre Hitler, uma de suas admirações mais surpreendentes, Lula declarou: "O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer".
Dez anos mais tarde, em resposta à mesma pergunta, citou apenas Gandhi. Hoje, se irrita com a exploração do tema.

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