São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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O que revela um fundo de baú

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Até anteontem, sexta-feira, 20 leitores já haviam protestado contra uma reportagem que a Folha publicou na quinta-feira da semana passada, 21 de abril, debaixo do título "Lula declarou admirar Hitler e Khomeini". É verdade que a maior parte desses leitores vão votar em Lula para presidente, e que seus protestos levam em conta o que eles imaginam ser uma indisposição da Folha contra o candidato do PT. Mas alguns de seus argumentos são imbatíveis, e merecem análise.
Um exemplo: a Folha não revelou quem foi que desenterrou a entrevista de Lula feita 15 anos atrás -e sem esse dado, importante, o leitor não pôde conhecer a origem de um golpe de campanha contra o PT, promovido por alguém que tenta grudar ainda mais no candidato a imagem de radical. Se esta vai ser a corrida eleitoral mais suja a que já se assitiu, a imprensa deveria ter especial preocupação em revelar a fonte das acusações e dos dossiês que prometem pipocar daqui até dezembro.
Ao apresentar ao leitor o que disse Lula, o jornal "editou" as declarações sobre Hitler e Khomeini, retirando-as de um contexto (a íntegra da entrevista) e menosprezando uma situação (ela foi feita em 79) que poderiam explicar muita coisa. De um total de 12 páginas de entrevista, a Folha pinçou duas frases. Não teve o cuidado de ler a entrevista inteira, ao que parece, porque não ofereceu ao leitor uma análise de tudo o que disse na ocasião aquele Lula de 34 anos, recém-saído de duas greves monumentais que mudaram a história sindical e política do Brasil, às vésperas de fundar um partido que hoje é o PT. Duas de suas frases foram suficientes.
Se tivesse feito reportagem, no sentido mais nobre da palavra, a Folha poderia ter contado ao leitor que, sobre Khomeini, um Lula nada radical também disse na entrevista: "Ninguém pode ter a pretensão de governar sem oposição. E ninguém tem o direito de matar ninguém. Nós precisamos aprender a viver com quem é contra a gente, com quem quer derrubar a gente. Não é justo o Khomeini tomar o poder, ser aplaudido, admirado e depois começar a matar os caras que são contra ele. Então ele teria que admitir como natural que o Xá matasse os adversários. Acho que o importante é fazer a coisa de forma que não sobre argumento pra ninguém ser contra". À pergunta "Quer dizer que você admira o Adolfo (Hitler)?", Lula respondeu na mesma entrevista: "Não, não. O que admiro é a disposição, a força, a dedicação. É diferente de admirar as idéias, a ideologia dele". Segundo anotação da entrevista original, a resposta foi dada em tom "enfático". Ao registrá-la, apenas na edição de 28 de abril, o jornal estranhamente não reproduziu esse detalhe.
Se tivesse feito reportagem, no sentido mais nobre da palavra, a Folha poderia ter contado ao leitor que, calouro na política em 79, Lula disse admirar em Hitler e Khomeini algo que talvez não soubesse nomear: seu carisma. E é inegável que ambos tivessem carisma (aliás, Hitler aparece listado como exemplo no verbete "carisma" do Novo Manual da Redação editado pela Folha, ao lado de Getúlio Vargas, Charles de Gaulle e Fidel Castro, numa lista que ainda poderia ter Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt ou Stalin).
Em vez de ter tratado a entrevista com um certo sensacionalismo, a Folha deveria ter se preocupado em enquadrar o caso dentro do que ele é: um golpe de campanha com o objetivo de criar um fato (negativo) para um candidato adversário (de quem? O jornal não revelou ainda. Resguardou uma fonte em detrimento do direito que o leitor tem de conhecer os bastidores da tal campanha mais suja da história). E poderia ter conservado sua isenção numa corrida eleitoral em que esse tipo de "revelação" promete ser pauta diária. A cada dossiê, a cada fundo de baú revirado, a imprensa tem que responder com rigor cirúrgico: abri-lo e dissecá-lo para oferecer ao público um diagnóstico preciso e equilibrado sobre seu conteúdo e sua confiabilidade.
A Folha perdeu uma boa oportunidade, e irritou seus leitores com um comportamento apressado e razoavelmente irresponsável, que dá margens a suspeitas como as que aparecem em várias das manifestações à ombudsman: o jornal estaria ajudando a atrapalhar a campanha de Lula.
Levantamento do boletim "Deadline" mostra que a Folha está publicando um noticiário equilibrado entre os dois candidatos mais bem colocados nas pesquisas eleitorais, Lula (36% na última pesquisa Datafolha) e Fernando Henrique Cardoso (20%). Do espaço reservado à cobertura das eleições, a Folha estaria reservando 12,77% para Lula e 11,05% para FHC. "O Estado de S.Paulo" estaria dando 6,58% para FHC e 6,22% para Lula. "O Globo", 5,66% para FHC e 2,70% para Lula. "Jornal do Brasil", 7,86% para FHC e 4,82% para Lula.
Lembro ao leitor que esses números revelam pouco, quase nada. É preciso analisar como os jornais estão ocupando esses espaços - e a impressão que os leitores da Folha continuam manifestando em cartas e telefonemas é de que o jornal está acometido de "fernandohenriquismo". Ainda falta alguém analisar se o espaço reservado para o candidato do PT tem matérias de conotação mais negativa ou positiva do que aquelas publicadas sobre o candidato do PSDB. Se as fotos em que Lula aparece são mais favoráveis ou cruéis do que aquelas em que FHC aparece. Ou seja, ainda falta um trabalho mais consistente sobre a cobertura que os jornais estão fazendo desta eleição.
A Folha noticiou os números do "Deadline" em sua coluna Painel de terça-feira, 26 de abril, sem a devida ressalva de que eles foram obtidos com régua, e não com uma análise crítica do jornal. Análise, aliás, que a imprensa continua devendo a seus leitores.

Por motivo de viagem, Ricardo Semler só volta a escrever em 15 de maio.

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