São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Jogo de espelhos da revisão terminou

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As elites conservadoras moveram mundos e fundos. Mas não conseguiram levar avante a reforma constitucional com que sonhavam.
Seu objetivo não era apenas rever a Constituição promulgada em 1988. Tratava-se, na verdade, de alterar pontos fundamentais da Carta Magna, para adequá-los aos interesses de poucos, sob a alegação de que sem tais mudanças o país continuaria "ingovernável".
A idéia era reescrever a toque de caixa a Constituição, aproveitando-se da boa vontade do relator da revisão e de um suposto rolo compressor formado por parlamentares do PMDB, PFL, PPR e PSDB, que esmagaria as tênues resistências dos partidos de esquerda.
Felizmente, como bem assinalou Wanderley Guilherme dos Santos, os parlamentares tiveram a imprudência e o bom senso de não estraçalhar o texto constitucional, em plena crise de hegemonia política e em meio a uma instabilidade econômica notável.
Eles perceberam que o texto constitucional é uma engenharia complicada de acomodação de interesses e aspirações e sua alteração, de forma atabalhoada e leviana, só contribuiria para piorar os conflitos explícitos e implícitos em nossa representação parlamentar e comprometer ainda mais a luta do presente pela estabilização econômica e democrática.
Essa postura do Congresso desencadeou a fúria das elites conservadoras e da mídia. A representação parlamentar passou a ser tratada como um bando de ociosos, por negar quórum às sessões revisionais.
Os que fazem tais críticas parecem ignorar que o relator conseguiu enfiar pela goela do Congresso um regimento tipo "ame-o ou deixe-o". As propostas apresentadas pela relatoria tinham que ser aprovadas ou rejeitadas sem que os parlamentares tivessem direito a fazer emendas.
E muitas delas eram francamente indecentes, como a da fidelidade partidária. Esta seria respeitada nos dois primeiros anos de mandato. Nos dois últimos, os parlamentares poderiam mudar de partido à vontade. Na verdade, o que se pretendia era constitucionalizar a infidelidade.
Diante da resistência do Congresso em servir de massa de manobra, as nossas açodadas elites conservadoras querem jogar nas costas do Parlamento o ônus da ingovernabilidade.
Esses senhores vendem pela mídia a versão enganosa de que a crise de Estado e de representação e a instabilidade econômica seriam fruto de uma Constituinte atrasada e populista, que impede o país de se abrir e respirar os ares do mundo.
Como já assinalei aqui, neste espaço (ver "A Revisão constitucional: novo jogo de espelhos", de 22/08/93), atribuir a uma Constituição descumprida em muitas de suas partes fundamentais, sobretudo em matéria de direitos, deveres e organização do Estado, a culpa da "ingovernabilidade" resultante da profunda crise econômica e social do país é uma falsificação desatinada.
Embora a revisão esteja aparentemente morta, o governo ainda pensa em patrocinar a alteração dos capítulos previdenciário e tributário para ajustar, mais uma vez, as contas públicas.
Achar, a esta altura do calendário político, que é possível promover uma ampla reforma tributária parece, para dizer o mínimo, falta de bom senso. A falta de acordo a respeito de que reforma fiscal fazer é gritante e, como já deixou claro a economista Sulamis Daín, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, há uma enorme cacofonia tributária representada pelos projetos Ari Oswaldo, Luiz Roberto Ponte, Fiesp, Força Sindical e Receita Federal, sem falar na subemenda do deputado José Serra.
Discordantes em vários pontos fundamentais, tais propostas têm algo em comum: todas, como diz Sulamis, omitem ou falseiam seu impacto sobre a Federação e, principalmente, sobre o bolso do contribuinte.
Como não há condições políticas no momento de tentar alterar o pacto federativo, pois esse poderia ser um dos caminhos mais rápidos para criar o caos institucional, fica evidente que a revisão constitucional não tem qualquer papel a desempenhar no que diz respeito à questão fiscal.
Aliás, o próprio governo a atropelou através da criação do Fundo Social de Emergência, viabilizando a centralização no Orçamento da União de todos os ganhos proporcionados por este pacote tributário, além de vincular a este fundo nada menos que 20% das contribuições sociais arrecadadas pela União e normalmente repassadas ao orçamento da Seguridade Social.
Wanderley Guilherme dos Santos está cheio de razão ao afirmar que "o Congresso, com a absoluta autonomia que lhe garante o artigo 3º das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, faz a revisão que quer e pode. Até agora, com sabedoria, tem repelido todas as propostas oligarquizantes. Espera-se que assim continue até 31 de maio, dia da primeira morte anunciada da grande aliança conservadora. Depois, todos podem se sentar à mesa e, com prudência e respeito mútuo, iniciar a grande conversação constitucional".
Na realidade, se nossas elites conservadoras não tivessem tanta gana em alterar o texto constitucional, o Congresso poderia ter trabalhado nos últimos meses na elaboração e votação da legislação ordinária indispensável para abrir caminho à efetiva vigência de alguns dos direitos constitucionais que levaram seu principal articulador a chamá-la "Constituição Cidadã".
Antes de reformar a Carta Magna de 1988, é preciso continuar a longa luta dentro do Estado e da sociedade, para que os direitos virtuais da massa de "cidadãos de terceira classe" relacionados no texto constitucional se transformem em direitos reais.
Quanto a certos cidadãos de "primeira classe", espera-se que tenham aprendido a lição, com o fracasso da revisão, de que a arrogância nem sempre é boa conselheira e que numa socidade democrática os de baixo não podem sair perdendo todo o tempo.

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