São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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AS PAIXÕES POLÍTICAS

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Sentimento(s) e Identidade(s): os Paradoxos do Político" é o tema de um colóquio que começa na próxima terça-feira na Unicamp (Universidade de Campinas).
Promovido pelo departamento de história do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e pela Universidade de Paris 7, vai reunir pela segunda vez professores brasileiros e franceses ligados às áreas de história e ciências sociais, no projeto comum de examinar as questões de identidade e sentimentos que estão no avesso da racionalidade política (leia texto à pág. 6-8).
Para o colóquio foram convidados, entre outros, o sociólogo e cientista político Pierre Ansart e a historiadora Michelle Perrot (leia entrevista à pág. 6-9).
Reconhecer a dimensão afetiva do exercício político foi o polo central em torno da qual se desenvolveu o trabalho de Pierre Ansart, autor de "Os Excluídos da História: Operários, Mulheres, Prisioneiros" (Paz e Terra).
Trabalhando no tema desde os anos 70, Ansart aponta para fraqueza de teorias políticas racionalistas e homogeneizantes que ao desprezar os afetos e o irracional, marginalizam estas manifestações para o terreno do excepcional, estreitando a sua compreensão.

Folha - Qual a importância de franceses e brasileiros discutirem hoje sobre sentimentos, identidade e a política?
Ansart - O Brasil tem uma longa tradição de afetividade forte no domínio político, assim como a França. Há no Brasil questões de afetividade política muito precisas que a história recente revelou através de fenômenos de emoção coletiva –como o que se pôde ver com a morte de presidentes– ou o envolvimento com eleições. O colóquio será a chance de discuti-las.
Folha - A manifestação de afetos na política é vista ainda pela maioria dos cientistas como algo extraordinário ou um desvio?
Ansart - Essa é uma atitude muito comum que ainda persiste, embora hoje haja uma evolução em todas as ciências sociais. Se tomarmos a questão das mentalidades, das representações afetivas, veremos um movimento difuso de maior atenção aos problemas de sentimentos, de paixão.
Nos Estados Unidos virou moda: estão preocupados com as emoções individuais e coletivas que tenham consequências sociais.
Folha - Como se pode analisar o desmoronamento das ideologias do ponto de vista das paixões políticas?
Ansart - Não acredito que estejamos vivendo um fim das ideologias, creio que isso é um discurso fácil dos meios de comunicação. As ideologias têm um caráter necessário e funcional.
Entendo ideologia como interesses, conflitos políticos, uma mistura de coisas que não podem ser reais porque concernem o futuro e o domínio do contestável, e de outra parte têm relação com a ação. São sistemas de pensamento e afetos que estão em transformação.
Folha - A ressurreição de movimentos extremistas racistas e fascistas, como acontece hoje em dia na Europa, preenche o vazio deixado pelas antigas paixões ideológicas?
Ansart - Isso é uma parte da verdade. O Partido Comunista francês foi um partido muito forte –teve de 35% dos votos em 1946– e conseguia reunir grupos, famílias e comunidades de origens étnicas e religiosas diferentes como cristãos e muçulmanos. Com o seu enfraquecimento, as comunidades muçulmanas não se integram mais.
Hoje estas adesões se desfizeram. Há outros fatores como a própria decomposição da classe operária. Isso ajuda a decompor comunidades, libera espaços de desconfiança e de hostilidade.
Diz-se muito na França hoje que há uma dissolução dos laços sociais. Eu partilho desta opinião. É verdade que as igrejas, os sindicatos e os partidos políticos são menos poderosos do que há 30 anos. Esse enfraquecimento faz com que as comunidades e grupos tenham outras bases de identidade, como o racismo por exemplo.
O reforço das identidades é hoje um fenômeno universal que se espelha no desenvolvimento de fundamentalismos na religião, ou com base étnica –africanos, asiáticos, etc. Há desenvolvimentos desse processo que são chamados de racismo, mas eu procuro não empregar muito esta palavra, que está hoje desgastada, embora designe problemas reais. O fato é que estão se desenvolvendo tendências separatistas, de agressividade entre diferentes comunidades.
Folha - O entendimento, dissociado da política, da questão da identidade e dos afetos pode explicar a surpresa diante da eclosão de nacionalismos em meio às tentativas de construção de uma Europa unificada?
Ansart - Há uma contradição e uma cegueira. Os clássicos da sociologia política, desde os antigos, sempre foram sensíveis ao fato de que as atitudes políticas são ligadas às afinidades pessoais. É isso que está explodindo hoje.
Se tomarmos o conflito da Iugoslávia, nota-se que as populações foram levadas a se determinar com base em uma identidade étnica, onde são as suas vidas pessoais que estão engajadas, e não no plano político. As pessoas são mobilizáveis a partir de sua definição pessoal.
Há aí uma ilusão do Ocidente, uma incapacidade de compreender a ligação entre a paixão pessoal e política, paixão do público e paixão do privado. Optou-se pela dicotomia, enquanto Freud e os filósofos do século 18, que estavam mais atentos a estes fatos, a evitaram. O indivíduo aborda o político levando sua vida privada, e não abstratamente.
Isto se liga também à presença de diferentes culturas numa mesma nação, e neste sentido o exemplo do Brasil é original. Esta dicotomia não se afirmou e parece não ter trazido problemas. Quanto à unificação européia é uma resposta para este quadro.
Embora eu não seja um "europeu" convicto, creio que a criação de um espaço político mais complexo poderá distender –ao contrário do que se imagina– as hostilidades inter-étnicas.
Hoje se fala muito da violência que se praticou por exemplo na Alemanha contra os turcos, ou estrangeiros. Mas observo também a intensidade da indignação com esse fenômeno. Ela abarca a maior parte da população, o que é um sinal altamente positivo.
Folha - A eleição democrática dos neofascistas na Itália parece introduzir mudanças na sensibilidade política. Os extremistas, antes minoritários, tornam-se representantes de um governo legal. Que consequências tem essas eleições para a Europa?
Ansart - Eu desconfio das etiquetas. As estruturas, assim como as pessoas, evoluem. Não conheço o neofascismo italiano a fundo, posso falar do movimento que se diz neofascista. Duvido que seja realmente. É possível que seja um dos inúmeros movimentos de direita da Itália, mas não sei se a designação de fascista é a melhor.
Os jornais franceses dramatizaram bastante a ascensão de Berlusconi, mas na situação européia atual o fascismo não é possível, salvo se criasse efeitos muito destrutivos ao próprio país. A Itália atual é um país uma economia forte. Eu não tenho medo da evolução atual. As forças moderadas na Itália são mais fortes.
Por outro lado os problemas de oposição interna entre o Norte e o Sul é que continuarão com este governo, e é neste conflito que há realmente problemas para a Itália.
Folha - Em entrevista recente publicada nesta Folha, Umberto Eco afirmou que não vê diferença entre os nazistas de ontem e os neonazistas de hoje. O senhor concorda com esta afirmação?
Ansart - Ele não é o único a pensar assim, mas não partilho desta análise. Acredito que nestes movimentos de direita e de extrema direita temos bases que são de pobreza, de dificuldade de existência e ódio em relação às classes ricas. É um fenômeno gigantesco que vem do século 17 e 18. A hostilidade dos pobres é real e fundada. Há uma oposição de nível de vida que é enorme.
Na França, o desenvolvimento da miséria hoje é assustador. A partir deste descontentamento, desta cólera diante da injustiça social, do desemprego, diversas reações se produzem, mas não se pode afirmar que é a miséria que cria atitudes fascistas.
Esse esquema emocional é para mim excessivo, talvez ligado a opções partidárias respeitáveis. E de medo. O medo é um grande sentimento político. Há grupúsculos na França, na Itália, na Alemanha que se pode dizer que são fascistas.
Folha - Mas são eles mesmos que se denominam neofascistas.
Ansart - Não falo do núcleo central, onde pode haver pessoas realmente fascistas. Em torno do núcleo há jovens, sobretudo rapazes, com carências afetivas e culturais que encontram nestas formas de afirmação agressivas, um modo de afirmação simplista.
É interessante observar que moças não participam destes movimentos, o que os condena, pois se as mulheres não participam um movimento não é importante. É preocupante, mas se forem tomadas precauções, se a legalidade funcionar, a longo prazo isto vai evoluir, tomar outras formas e se acalmar. É necessário analisá-la, mas nem sempre acreditar na verdade desta dramatização, pois os meios de informação são grandes dramatizadores.
Folha - Mas na Bósnia a barbárie é incontestável.
Ansart - Numa guerra há sempre estes fenômenos. A história das guerras na Europa foi sempre atroz. As populações envolvidas não querem o conflito, não é toda população sérvia que aplaude o que os compatriotas fazem com os bósnios, mas na dinâmica da guerra são os grupos mais extremistas que levam vantagem. É atroz, mas é velho, lembra as guerras de religião entre católicos e protestantes.
O que se descobre desde a queda do muro de Berlim, infelizmente, é que os grandes impérios turco, austro-húngaro e russo tinham a grande vantagem de bloquear os conflitos inter-étnicos.
Estamos agora num período novo. Existe uma grande violência potencial na humanidade. Durante anos se disse, em certos meios sociais, que é necessário defender as identidades. Mas isso também pode conduzir a catástrofes.

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