São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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As batalhas nacionalistas e o futuro dos cosmopolitas

FRANCIS FUKUYAMA
ESPECIAL PARA O `THE NYT BOOK REVIEW'

O reaparecimento repentino do nacionalismo no mundo ex-comunista contrariou as expectativas e resultou numa série de novos livros que procuram explicações e tratamentos para o fenômeno.
Será que o nacionalismo desvairado da espécie iugoslava vai definir a ordem mundial do pós-Guerra Fria, ou ele seria apenas um acidente infeliz na transição para a modernidade democrática? "Blood and Belonging" afirma que a maré da história está correndo no sentido errado.
Michael Ignatieff é filho de pai russo e mãe inglesa. Foi educado nos EUA e trabalhou no Canadá, na Grã-Bretanha e na França.
Esse pano de fundo faz dele um autodenominado "cosmopolita" que se vê como ligado, através de sua história familiar, a várias das lutas nacionalistas que estão surgindo pelo mundo afora. Seu livro consiste de viagens feitas à Croácia, Sérvia, Alemanha, Ucrânia (onde procurou a fazenda que pertenceu a sua família), Quebec, Curdistão e Irlanda do Norte.
O ponto forte de seu livro está nos retratos vívidos e resumidos que traça de nacionalistas contemporâneos. Num capítulo memorável sobre a Croácia e a Sérvia, Ignatieff visita a cidade de Jasenovac, onde durante a Segunda Guerra Mundial cerca de um quarto de milhão de pessoas –quase todas sérvias– foram assassinadas num campo de concentração de estilo nazista, pelo regime fascista que governava a Croácia na época.
Ignatieff vê com ceticismo boa parte do que se costuma dizer sobre os conflitos étnicos. Samuel Huntington, professor da Universidade Harvard, argumentou no ano passado que de agora em diante o mundo se caracterizará pelo "conflito de civilizações". A cultura tomaria o lugar da ideologia como linha divisória provocadora de conflitos. O melhor exemplo disso seria a guerra religiosa travada entre católicos, ortodoxos e muçumulmanos na ex-Iugoslávia.
Mas Ignatieff sustenta que os sérvios e croatas (e, em grau menor, muçulmanos bósnios) não se assemelham tanto a ninguém quanto a si mesmos em termos de suas línguas, costumes, cultura política e memórias comuns. O conflito, segundo Ignatieff, é movido pelo que Freud chama de "o narcismo das diferenças menores", no qual povos similares exageram aquilo que os diferencia, numa procura por identidade.
Ignatieff acha que o mesmo pode ser dito dos protestantes e católicos de classe trabalhadora na Irlanda do Norte: presos numa armadilha temporal, eles olham para um passado semelhante que já foi esquecido há muito tempo por seus correligionários mais cosmopolitas em Londres ou Dublin.
O tom de "Blood and Belonging" é sombrio: Ignatieff nota que embora antigamente acreditasse que o mundo pertence a cosmopolitas como ele, agora parece que o novo nacionalismo vence em toda parte. Nacionalismo cívico e coexistência cultural são o privilégio de apenas alguns poucos ricos no mundo desenvolvido, diz ele, e mesmo eles estão sob ameaça.
Na verdade, seu livro apresenta evidência de que não existe um único fenômeno que pode ser chamado de "novo nacionalismo", e que a paranóia dos sérvios não é típica de outros movimentos nacionalistas. Três dos seis nacionalismos discutidos –no Quebec, no Curdistão e na Irlanda do Norte– não são exatamente novos.
O capítulo sobre a Alemanha contém a obrigatória entrevista com um skinhead de dentes arreganhados, mas o próprio Ignatieff admite que os skinheads estão à margem da política alemã.
Mais importante é a transformação operada na consciência nacional dos alemães, mesmo os liberais, que nos últimos anos começaram a indagar-se se é possível construir uma identidade nacional fundamentada na culpa e no arrependimento, e se o multiculturalismo não terá limites.
Estas são dúvidas razoáveis, e aqueles que as colocam, na Alemanha contemporânea, estão longe de serem os jovens skinheads ou os jovens camponeses bêbados e violentos que ocupam as barreiras militares perto de Vukovar ou Mostar, na ex-Iugoslávia.
O nacionalismo do Quebec tampouco é a revolta contra a modernidade que caracteriza os conflitos atuais em parte da Europa Oriental. Os yuppies do Quebec que Ignatieff entrevista em Montreal são todos produtos da rápida modernização econômica produzida no Quebec durante a última geração. Eles deixam muito claro que sua versão de nacionalismo é liberal, não-étnica e não-discriminatória (posição esta que os coloca numa posição embaraçosa quando grupos indígenas como os Crees –também visitados durante as viagens do autor– lutam por autonomia no interior do Quebec).
Em outras palavras, o nacionalismo do Quebec é um jogo jogado no fim da história: os quebequenses aceitam a ordem liberal global na política e na economia (de fato, eles dependem do livre comércio norte-americano para serem independentes de Ontario), mas querem sua versão própria dela.
O aspecto mais estranho e inconsistente de "Blood and Belonging" é a nostalgia que o autor demonstra dos velhos sistemas imperiais. É verdade, como ele escreve, que o fim do império soviético "trouxe caos e violência para os muitos povos pequenos, fracos demais para estabelecerem Estados próprios defensíveis".
Mas isto não chega a ser justificativa para o endosso do imperialismo em nome da estabilidade, e em outras partes do livro Ignatieff defende as aspirações nacionais dos curdos, contra as posições imperiais da Turquia e do Iraque.
Desconfio que o futuro do cosmopolitismo liberal seja mais seguro do que Ignatieff acredita, mas precisamos nos manter vigilantes em relação a seus inimigos. No tocante a isso, "Blood and Belonging" presta importante serviço.
Continuo um liberal, mas não posso me impedir de pensar que os liberalismo –o governo pelas leis, não pelos homens, do argumento em lugar da força– é algo que se opõe à natureza humana e só é mantido através de uma luta contra essa natureza.
Mas entre os tártaros da Criméia, os curdos e os crees (índios de uma tribo algonquina do Cana
dá central), eu me deparei com os esfomeados, pessoas cuja sobrevivência continuará em risco até que conquistem sua autodeterminação, seja em sua própria nação-Estado ou no interior de outra.
Em todo lugar onde fui, encontrei uma luta sendo travada entre os que crêem que uma nação deva abrigar a todos e que a raça, cor, ou religião não devem constituir barreira, e aqueles que querem que sua nação abrigue apenas aos seus. É a luta entre a nação cívica e a nação étnica. Eu sei de que lado estou. Também sei que lado está ganhando neste momento.

Tradução de Clara Allain
O livro acima pode ser encomendado à livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, SP, tel. 011 285-4033)

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