São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Aula discute o significado do medo e da razão

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nilton Barbosa Cabral, 9, é filho de um caminhoneiro. Sua mãe trabalha em casa. Ele acompanha com o dedo a leitura de "Pimpa", uma das histórias escritas por Matthew Lipman, para o uso na quarta série do primeiro grau.
Nada o distrai. Nem mesmo a câmera de uma fotógrafa colada em seu rosto, que registra a sessão semanal de "Pimpa" na Escola Professor Adelino José d'Azevedo, em São Mateus, zona leste.
"Pimpa" foi concebida a partir de questões de filosofia da linguagem, mas isso não é dito aos 33 alunos sentados em círculo. O que lêem é a história de uma menina interessada pelo significado das palavras, com seus problemas, inquietações, dúvidas e descobertas cotidianas.
No episódio 3 do capítulo 3, Pimpa sente que seus dentes estão ficando moles e pergunta ao pai se os dentes sabem que está na hora de cair. Depois de lhe explicar que os dentes são "empurrados", o pai conta à menina que, quando as lagartixas perdem o rabo, um outro nasce no lugar. À noite, Pimpa sonha que alguém colocou um pé no lugar do rabo de uma lagartixa e o pé não sabe o que será quando crescer.
Após a leitura, Nilton levanta o braço e pergunta: "O que quer dizer `não faz sentido'?".
A pergunta, que pode ter um desdobramento bastante complexo, é apenas uma da série de 30 provocadas pela leitura do texto. Grande parte gira em torno do significado da linguagem, parte de dúvidas semânticas para desembocar num questionamento metafísico, ético, lógico ou estético.
As perguntas são anotadas no quadro-negro e delas são tirados os temas que serão colocados em discussão: o medo, o falso, o tempo, a razão etc. Razão e medo, com mais votos, são os assuntos escolhidos para a discussão do dia.
"A razão está dentro da gente?", pergunta a professora Léa Bonfim Meneguello, depois do intervalo do recreio e da consulta ao manual de aula preparado por Lipman. O cotidiano das crianças emerge imediatamente.
"Não", responde Priscila Galatti, 9. "Para a pessoa que rouba e assassina, ela está fazendo a coisa certa, mas para a gente é errado. Você pode achar que tem razão mas não tem."
"A razão está dentro da gente", retruca Evandro Galego, 12. "É a nossa mente. Porque é parte do nosso corpo."
"Tinha um colega do meu tio que não descobria a razão por que não conseguia trabalhar. Meu tio perguntou se ele tinha o ginásio completo e ele disse que não. Foi aí que descobriu a razão", diz Adriel Correia da Silva, 11.
O tema pode ter um desdobramento infinito. "Se deixar, vai longe", diz Meneguello, rindo, antes de introduzir o novo tema: "O que é o medo?".
Alguém fala em ameaça e daí em telefonemas anônimos (recebidos por uma tia), assassinatos e a discussão cai inevitavelmente na imagem da morte, dos mortos e das almas.
Priscila Galatti diz ter medo de almas. A professora pergunta se alma tem corpo. A classe responde em uníssono que não.
"Se não tem corpo, o que pode fazer com você? Por que todo mundo não tem o mesmo medo? O medo não está na imaginação? Não é a gente que imagina o medo?", prossegue Meneguello, que trabalha há dois anos com o método criado por Lipman.
O programa foi introduzido na Escola Professor Adelino José d'Azevedo há três anos. Hoje, sete dos seus professores já receberam treinamento do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças.
"O professor é treinado para desenvolver todo um trabalho reflexivo. O manual é um incentivo para os exercícios. O professor não precisa ser formado em filosofia. Ele deixa de ser o professor que ensina um conteúdo para trabalhar junto às crianças e ajudá-las a filosofar", diz Ana Luiza Falcone, diretora do CBFC.
"O primeiro ano é o mais difícil. Depois fica melhor. Você não vê o resultado só com um ano. Antes eu tinha crianças que nem levantavam da carteira. Hoje, são mais indagadoras, participativas e interessadas", diz Meneguello.
A experiência com o método de Lipman na rede pública de São Paulo começou em 85, na escola estadual Santos Dumont, na Penha, por iniciativa de Marcos Lorieri, professor de filosofia do Departamento de Educação da PUC que descobriu o programa em 84 numa palestra.
"Foi na Penha que aprendi a trabalhar com o programa. Teve uma repercussão enorme. Em julho de 85, outras cinco escolas de São Miguel Paulista adotaram o método", diz Lorieri, 53, que mantém o assessoramento às escolas interessadas na zona leste como assistente técnico da Divisão Regional de Ensino da Capital 2.
"As crianças passam a ser mais questionadoras, capazes de formular questões mais inteligentes, numa sequência lógica de pensamento. Passam a ser capazes de fazer nexos entre os discursos oral e escrito, a identificar pré-suposições adjacentes, a ler nas entrelinhas, a fazer inferências adequadas, tirar conclusões", diz Lorieri.
"É meio cansativo para o professor. É bem trabalhoso. Não é obrigatório, mas a gente acredita, porque sabe que tem um retorno. Anda muito difícil trabalhar o raciocínio e a imaginação com a molecada", diz Meneguello.
Segundo Lorieri, esse retorno vai além do aprimoramento cognitivo e possibilita discussões até sobre a função social da arte.
"Houve uma meninininha em São Miguel que leu uma história sobre o Picasso no jornal e achou que era um bandido. Ela ficou muito impressionada que os quadros valessem milhões de dólares e achava injusto que só quem tinha dinheiro pudesse vê-los", diz.
Os alunos da quarta série da escola professor Adelino José d'Azevedo já discutiram temas como luz, deveres e direitos, pensamento, imaginação, mistério e outros a partir da leitura de "Pimpa".
"Gostei mais de discutir a luz. Discutimos a luz que ilumina e a que é dada a uma outra pessoa, com a gravidez", diz Suélen Alves Rocha, 10. "A gente aprende a perder a vergonha, pensar mais. Serve para formular melhor as perguntas", diz Evandro Galego.
Pelo menos uma cena durante a discussão da quarta série da Escola Professor Adelino José d'Azevedo depõe a favor do método no incentivo a um pensamento autônomo e livre.
Enquanto discutiam a "razão", Priscila surpreendeu a turma ao ousar questionar o que podia aparentemente ser inquestionável –o próprio método: "O `Pimpa' pode ser bom para uma pessoa e não ser para outra. Isso não quer dizer que quem acha que o `Pimpa' é bom tem razão".

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