São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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Celular toca em recital de Barbara Hendricks

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Há um bebedouro no subsolo do Teatro Municipal de São Paulo que só é conhecido por quem frequenta concertos e óperas.
O aparelho é o melhor índice de audiência do teatro. Anteontem, no intervalo do recital da soprano norte-americana Barbara Hendriccks, ele estava sem filas.
Leia-se: o público que assistia à cantora não era o habitual do teatro. Eram socialites que parece nunca terem assistido a um recital na vida. Aplaudiram no meio dos números, como se a soprano fosse uma foca amestrada.
Mas não foi tudo. Uma dessas peruas devia ter um compromisso às 22h15. Neste horário, o telefone celular dela tocou. Barbara Hendricks terminava a primeira das "5 Canciones Negras", do compositor catalão Xavier Montsavatge. O Municipal devia multar o proprietário do aparelho –provavelmente um novo-rico exibicionista.
Mas público importa pouco nessas situações. Nem ruído nem vexame turvou o desempenho perfeito da cantora. Barbara provou ser uma das senhoras do "lied" (canção erudita composta a partir de poemas de autores alemães).
Entrou no palco às 20h35 vestida com um longo rosa, acompanhada pelo pianista sueco Staffan Scheja.Começou com a cantata K. 619, do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), uma composição pouco executada.
Essa parece ter sido a intenção de Barbara no recital; surpreender raridades em obras de compositores conhecidos como o alemão Richard Strauss (1864-1949), o austríaco Franz Schubert (1791-1828) e o francês Georges Bizet (1838-1875).
Barbara possui uma maneira delicada e profunda de abordar a forma canção. Apesar da voz minúscula (é uma soprano lírico com graves escassos), ela soube dominar o espaço com vibratos econômicos e a articulação vocal precisa. Com 45 anos de idade, parece ter voz de menina triste.
Ela combina com um hábito abandonado no século 18, que as platéias andam retomando: chorar em público, sem vergonha dos convivas. Barbara comove com o timbre suave, a palavra exata, o poema bem pronunciado.
Será que conseguiu arrancar um pingo de emoção do público? Se conseguiu, este não deve ter sabido por quê. Ela demonstrou ser uma das mais sensíveis intérpretes de Schubert.
Infelizmente, metade do teatro era de clientes de banco; a outra, de quem pôde pagar US$ 100 por um ingresso. Barbara Hendricks não teve público para se enternecer com ela. O que lhe dá maior carga lírica.

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