São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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Diegues mistura cinema, música e televisão

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Veja Esta Canção", filme em quatro episódios que a TV Cultura começa a exibir no próximo sábado, é uma homenagem que o cinema presta à música popular por meio da televisão.
Dirigido por Cacá Diegues (autor de "Xica da Silva" e "Bye Bye Brasil", entre outros), com quatro segmentos inspirados em canções brasileiras, é o primeiro caso de parceria TV-cinema na realização de um longa-metragem.
Em sua produção se associaram a TV Cultura de São Paulo, o Banco Nacional, a Warner Music e o produtor Zelito Vianna.
Realizado com um orçamento modesto (US$ 300 mil) e em tempo recorde (um mês de filmagem e um de montagem), o filme foi bem recebido por cineastas e jornalistas na pré-estréia realizada na semana passada em São Paulo.
Depois de exibido na TV, "Veja Esta Canção" deverá passar nos cinemas do país e do exterior.

Folha - Como surgiu o filme?
Cacá Diegues - Surgiu primeiro a idéia de fazer um filme inspirado em canções. Passei então a procurar as canções e, ao mesmo tempo, histórias que tivessem a ver com elas.
Nesta fase, trabalhei muito junto com o Miguel Faria Jr. Não foram histórias propriamente encomendadas –com exceção do episódio "Pisada de Elefante", para o qual eu pedi ao Euclydes Marinho uma adaptação de "Carmen".
A música desse episódio seria "Princesa", de Jorge Ben Jor, mas ele insistiu em fazer uma canção inédita. Viu o filme num dia e no outro mandou a fita com "Pisada de Elefante".
Folha - A ligação da música com a trama é mais evidente em "Drão" do que nos outros episódios...
Diegues - A nossa idéia não era ilustrar as letras das músicas, mas fazer um filme que se inspirasse nelas. Não queríamos nem um videoclipe, que seria uma ilustração visual aleatória da música, nem uma descrição narrativa da letra.
A maneira pela qual essas músicas entraram foi diferente em cada episódio: em "Drão" é a música do casal, em "Pisada do Elefante" é a que a bailarina dança em seu show, em "Você É Linda" é a que a menina escuta no walkman.
Folha - O episódio "Você É Linda", roteirizado pelo Walter Lima Jr., tem momentos que lembram "A Lira do Delírio", dele mesmo, pelo modo poético de olhar o Carnaval de rua...
Diegues - É verdade. Tem muito a ver também com um fantástico documentário que o Walter fez para a televisão inglesa chamado "Uma Casa para Pelé", sobre meninos de rua.
Além de ser um tributo à música brasileira, meu filme é também uma experiência amorosa com o audiovisual brasileiro.
Não só porque eu trabalhei com velhos companheiros como Miguel Faria e Walter Lima, mas também pelas pessoas novas que trabalharam comigo –uma mistura de gente vinda do cinema, da televisão, de videoclipes, de comerciais.
Folha - O que chama a atenção no filme é o seu frescor, a sua leveza. Parece que você está se libertando daquele peso do Cinema Novo, de querer "explicar" o Brasil, e atendendo a uma vocação mais lírica...
Diegues - Pode ser. Eu te digo que fiz esse filme com um prazer muito grande.
A experiência do fracasso do projeto de refilmagem do "Orfeu", ao qual dediquei dois anos da minha vida, tinha me deixado muito deprimido.
Enfrentei a depressão trabalhando, fazendo comerciais, videoclipes –e este filme agora foi o aproveitamento dessa experiência adquirida e, ao mesmo tempo, a redescoberta do prazer de filmar.
O cinema não pode ser um sofrimento. Mesmo com as imensas dificuldades que existem para fazer cinema no Brasil, é preciso transformar essas dificuldades em momentos de prazer, senão não vale a pena. Fazer um filme é como fazer amor: é cansativo, mas é muito bom.
Folha - Há uma diversidade muito grande de linguagens entre os vários episódios.
Diegues - Eu sempre invejei os músicos porque eles podem fazer LPs com 12 coisas diferentes uma da outra: a faixa pra tocar no rádio, a romântica, a dançante.
"Veja Esta Canção" é meu CD de quatro faixas (risos). E me deu muito prazer isso, porque é como se eu estivesse fazendo quatro experiências cinematográficas totalmente diferentes entre si.
Isso permitiu que eu radicalizasse certas tendências do meu cinema numa direção só em cada episódio. Por exemplo: eu nunca tinha feito antes uma comédia tão evidente como é o "Drão".
Folha - São também quatro histórias de amor que atravessam diversas idades e classes sociais. Isso estava previsto desde o começo?
Diegues - Quase. Depois de decidir fazer um filme inspirado em canções brasileiras, eu me perguntei duas coisas: que compositores e que tipo de canções?
Quanto aos compositores, resolvi escolher aqueles que eu entendia melhor, que eram os da minha geração, aqueles cujas obras me ajudaram a conhecer a mim mesmo e ao Brasil. Estou retribuindo o que eles tanto fizeram por mim.
Quanto às canções, pensei que seria bom, até para dar unidade ao filme, que fossem canções de amor. A última decisão, já no período de roteirização, foi a de dividir em quatro faixas etárias e quatro áreas geográficas do Rio.
Folha - Determinados temas centrais da cultura brasileira, e sobretudo carioca, estão espalhados nos episódios: o futebol, o Carnaval, o jogo do bicho...
Diegues - O Roberto Muylaert, da TV Cultura, quando viu o jogo do bicho no filme disse: "Putz, que premonição!" Esses elementos foram surgindo nas histórias, não foi uma coisa consciente.
Há uma espécie de obsessão dos artistas da minha geração de tentar entender o espaço humano, geográfico e cultural em que a gente vive. Este filme foi escrito por quatro roteiristas diferentes e eu não falei pra eles: "Bota o Carnaval, bota o bicho..."
Folha - O afeto com que você mostra os meninos de rua em "Você É Linda" é a sua resposta ao que chamou de autolinchamento dos brasileiros?
Diegues - Dos brasileiros, não. De alguns intelectuais brasileiros. Dessa onda de autodepreciação eu não participo nem um pouco.
Para mim, isso é uma tentativa das elites de justificarem a predação e o saque que elas fazem do país. Se você convence a população de que este país não presta, então o saque está justificado.
Não admito isso, não aceito, o Brasil não é um país de merda, de jeito nenhum. É um grande país. Quem é de merda são as suas elites, que foram incapazes de administrá-lo durante estes últimos anos e séculos.
O Brasil é uma mistura de desejos bons e realidades ruins –e eu acho que isso dá filme.
Folha - E essa parceria do cinema com a TV? Tem futuro?
Diegues - Espero que sim. No mundo todo a televisão é hoje a principal parceira do cinema, a principal produtora.
Até no Chile se produz hoje mais filmes que no Brasil. Eles fazem sete, oito longas-metragens por ano. Sabe por quê? Porque a televisão lá é obrigada a investir na produção de cinema.
No Brasil, isso é totalmente improvisado, depende de iniciativas isoladas como esta, minha, com a TV Cultura.
Folha - Onde você encontrou os atores mais jovens?
Diegues - Eu resolvi fazer um elenco principalmente com rostos desconhecidos, inesperados.
Nós vimos muitos vídeos com testes de atores, trouxemos atores de teatro que nunca haviam feito cinema e, no episódio "Você É Linda", trabalhamos quase só com meninos e meninas do grupo de teatro da favela do Vidigal.
As únicas "estrelas" do filme –Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Débora Bloch– estão lá não por serem estrelas, mas por serem grandes atores.
Aliás, foi a volta do Fernando Torres depois de sete anos de ausência, por problemas de saúde. Na cena em que ele rememora a atuação da mulher em "Carmen", ele chorou de verdade. Aquilo é "take" um. Ele ficou tão emocionado que eu não quis repetir.
Folha - Outra participação interessante é a da Silvia Buarque, que no episódio "Samba do Grande Amor" recebe de um apaixonado –e lê– versos escritos por Chico Buarque.
Diegues - Escolhi a Silvia não por ser filha do Chico, mas por ser uma grande atriz. Claro que, durante o filme, ela ficou muito emocionada. Esse tipo de relação afetiva contribui para criar um clima especial num filme.
Folha - Não é uma temeridade sair de uma produção ágil e leve como "Veja Esta Canção" e partir para uma grande produção internacional como "Tieta", seu próximo filme?
Diegues - É possível que isso às vezes assuste, apavore e altere as idéias de um cineasta. Mas acho que, aos 53 anos de idade e mais de 30 de cinema, tenho maturidade suficiente para me proteger.
Um filme é resultado de um desejo. O que você tem de ter a sabedoria de fazer é adequar esse desejo à realidade em que ele se articule melhor. O desejo de fazer "Tieta" só se articula com uma realidade de orçamento mais alto.

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