São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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"Veja Esta Canção" tem liberdade desamparada dos meninos de rua

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há algo de novo nestes quatro filmes que Cacá Diegues fez para a TV Cultura, em cima de quatro canções de Gil, Caetano, Chico e Jorge Ben Jor.
Não é maestria de virtuose, não é rigor formal racional, não é mensagem revolucionária, não é filiação às artes conceituais, não é achado de marketing.
O que é então? E um mistério surgido como um ovinho de aranha, um miasma, uma teia de luz entre os vários "media" que costuram esta produção como uma colcha de retalhos.
É um filme de cinema? Não. É TV? Não. É novela, o que é afinal? Acho que é uma ponte entre a tecnologia veloz e os anos do Cinema Novo, uma retomada minimalista depois de superépicos como "Quilombo", "Xica da Silva", "Bye Bye, Brasil", é um esforço de criação numa época de poucos recursos, é uma casa bem arrumada de pobres, com enfeites possíveis, com a originalidade de materiais reciclados.
É a precariedade como invenção e não como "maldição". Não é o "elefante construído com parcos recursos". É o "pouco" muito inventivo para caber no possível.
Durante os últimos anos de cinema no Brasil, sofremos a tirania do "formato", o problema de caber em algum nicho. Filmar para onde? Para quem? No "mainstream" de Hollywood? No mercadão ou no antimercado do "under dog"? Esta rara e nova junção da TV com o cinema e com a música criou um mosaico de linguagens, uma terceira margem do rio narrativo que é nova e que, como verdadeiro novo, ainda é inomeável.
A criatividade da produção (TV Cultura e Banco Nacional como produtores-criadores) gerou a novidade da imaginação.
Perguntaram a Cole Porter de onde vinha sua inspiração. Ele respondeu: "De um telefonema do produtor". Cacá foi acometido de uma inspiração rara, de uma liberdade feita de prazo exíguo, pouca grana, estréia na TV, fome de filmar depois da crise, ausência de um público normal, tragédia pós-Ipojuca.
O vazio de mercado libertou a sintaxe. O filme tem a liberdade desamparada dos meninos de rua. Não é por acaso que o melhor episódio é o romance de amor de uma putinha com um pivete, protegidos por um trágico travesti (música de Caetano) e o segundo melhor, a meu ver, é o milagre de um poeta-anjo subindo aos céus da Gamboa (música do Chico).
Este é o espírito do filme todo: inocência e santidade, virtudes dos despossuídos. Pela leveza da produção surgiram personagens leves que se amam em árvores, se alçam aos céus. Linguagem é produção. E não há aqui nenhum desejo "cult" de ser leve, ou por atitude ideológica ou por tradição formal.
Mesmo em Jim Jarmusch, por exemplo, nota-se uma leveza programada, um intelectualismo na inocência. Aqui não. Cacá estava tão cercado de encomendas que teve de ser livre; estava tão obrigado à despretensão que ficou profundo.
Teve de lançar mão de qualquer barbante, esparadrapo, cola-de-cuspe, tábua de caixote, confusão de gêneros, mistura de matérias-primas, fita Eastmancolor com vídeo, Hi-8 e 35 mm e (querendo ou sem querer) criou fita nova.
Usando brasileiramente os mais modernos equipamentos: o mágico editor "Avid" (um software que edita em digital), ADO'S, "croma-keys" e tantos outros agentes do inferno clipado que nos assola com o barroco hi-tech das MTV's da vida, Cacá conseguiu utilizar as trucagens para fins pacíficos, sem o bombardeio exibicionista que pode alienar videomakers jovens.
Assim, na mão da putinha, sorri vivo o retrato do pivete sumido; a av. Atlântica é filmada do ponto de vista do afogado, a perspectiva some, um cubismo-favelado se instala, as trucagens ostensivas ganham um sentido precário e poético, antropofágico, sem teorias.
O que era para ser uma experiência passageira do Cacá para a TV virou um de seus trabalhos mais criativos. E este desejo experimental, mas não-intelectual (o experimentalismo no Brasil foi em geral uma experiência arrogante), se propagou pela equipe, pelos figurinos louquíssimos, pelos figurantes absurdos onde o "miscasting" dá certo, por uma improvisação onde até os erros se incorporam como riqueza.
Alguma coisa se manteve viva nestes anos na invenção dos meninos-cineastas de rua, na conspiração dos "curtas" criativos. Esta alma viva ressuscita neste filme de Cacá Diegues, uma coisa parecida com a noite em que na casa de Luis Fernando Goulart se inventou o nome "Cinema Novo".

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