São Paulo, terça-feira, 3 de maio de 1994
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Ninguém perdoa os Oscars de Bertolucci

ARNALDO JABOR

Da Equipe de ArticulistasBernardo Bertolucci deu um almoço bem californiano em sua casa de Los Angeles. Vinhos de Nappa Valley, produzidos pelos vinhedos do Francis Coppola, grandes saladas, comida natural; isso, em 1982, quando eu estava negociando meu filme "Eu te Amo" nos EUA.
Bernardo estava numa depressão preocupante, depois das porradas que tinha levado com "A Tragédia de um Homem Ridículo" em Cannes-81. Os italianos e franceses malharam esse filme interessantíssimo, com o qual Bernardo tentava bater o pêndulo europeu na sua eterna oscilação entre Itália e Hollywood.
Cacá Diegues estava no júri de Cannes em 81 e conseguiu dar o prêmio de melhor ator para Ugo Tognazzi com a ajuda de Jean-Claude Carrière, que era o presidente. Nem assim adiantou. Eu vi a entrevista coletiva e Bernardo parecia um criminoso julgado por enfezados críticos fumando Gauloises.
Em 82, Bernardo tomava muitas pílulas de vitaminas na cozinha, tentando se fortalecer para a viagem terrível que Hollywood te cobra, um calvário entre faxes, salas de espera eternas, arrogâncias executivas e burrices argentárias.
Bernardo me disse na cozinha, nessa conversa sobre as diferenças entre cinema europeu e americano: "Ao contrário da Europa, o vento da dialética marxista nunca passou por este país". Estatelado entre esses dois pólos, Bertolucci havia escolhido o terceiro e mais doloroso caminho para um cineasta: nem nacional nem americano, nem só artístico nem só comercial, tentando como um Jonas na barriga da baleia, como uma traça na carne da indústria cultural, "penetrar no mundo".
Conheço bem o Bernardo e sei que nunca quis apenas o sucesso e dinheiro fácil. Sua fome era também outra. Uma fome de intelectual típico dos anos 60 que nunca se conformou (e fez o "O Conformista", seu fascínio; fez a saga do traidor e do herói, na "Estratégia da Aranha", seu drama básico) em deixar o cinema apenas na mão dos boçais "carpetbaggers" de Los Angeles, nunca aceitou uma Europa passiva diante do cinema homogêneo americano.
No entanto, Bernardo também nunca aceitou ficar confinado na gramática estruturalista "Tel Quel", "sessenta e oitista" que Godard impunha como "fim do cinema", depois de "A Chinesa" (67), o pior Godard, dominado pela besta quadrada do estudante Jean-Pierre Gorin, que fascinou sua alma culpada de poeta com esquematismos maoístas, e por Anne Wiazemsky, sua namorada –Carmen estudantil que o levava à loucura (como Godard gostava de sofrer!)
Por isso, Bernardo (filho de pai forte, crítico de arte) queria se libertar do jugo do Godard. Já em "O Conformista" (71) sacaneara-o botando a casa do professor assassinado com o endereço do Godard –rue Jules Verne, 12.
Também por isso, quando Bernardo faz "O Último Tango em Paris", em 1972, ele critica a babaquice "cahiers" dos cineastas e críticos franceses, botando o Jean-Pierre Léaud de otário, filmando feito um corninho literário, enquanto Marlon Brando (o pênis de Hollywood) comia sua namorada Maria Schneider.
Esta era a parábola perfeita do que Bernardo Bertolucci achava do cinema na época: "Enquanto o europeu faz lero-lero, os americanos comem nossas mulheres". E este filme também tinha dois gumes, pois Marlon Brando estava ali, dessacralizado, exposto e nu.
Confesso que, parodicamente, nessa tarde, enquanto ele reclamava como um europeu dos gringos, eu tirei uma namorada dele, uma "starlet" dublê de Marilyn Monroe, tão deslumbrante que eu chamei o Jorge Peregrino (hoje chefe da UIP) para ele testemunhar mais tarde no Brasil.
Assim, sob o tema do pêndulo do sim e do não, do traidor e do herói, da arte e da indústria, do comércio e da radicalidade, Bernardo foi o herói dos anos 70. Um herói diferente dos anos 60, quando a radicalidade era mais fácil, amparada por uma indústria que estimulava o "baby boom" dos jovens inconformados.
Mas, claro que esta dualidade heróica de Bernardo nunca foi bem aceita (ninguém gosta de nuances –penso em FHC), ninguém entendeu esta luta bífida e eu mesmo, na época, esculhambei "O Último Tango em Paris" como filme "restaurador".
E, no entanto, estava lá o Marlon Brando exposto à perversão mais total, levando dedinho de Maria Schneider no rabinho, na subversão do mito do "star system", sem contar que o filme era um maravilhoso escândalo no mundo careta do sexo papai-e-mamãe da época.
Como é fácil criticar Bernardo sem fazer cinema, sendo apenas ensaísta! Ninguém sabe o que é aguentar a gangue da distribuidora Miramax dizendo que "cortaram meia hora do `Buda', mas que é assim mesmo, que todos reclamam e depois gostam".
Então, ali em 82, Bernardo já estava se preparando para fazer uma grande vingança contra todo mundo, contra os europeus que o esculhambavam de dentro das livrarias e contra Hollywood. A vingança seria o sucesso total.
Estava já tomando vitamina para fazer "O Último Imperador", que ele levou anos armando, até explodir em 87 e ganhar oito Oscars. Na hora de receber, ainda fez piada: "New York is the big apple, Los Angeles is the big nipple" (trocadilho de maçã (apple) com seio (nipple), ou seja, "aqui em L.A., mamamos!").
Na Europa, ainda piorou. O homem comum da Itália considerou-o um ídolo que ganhou a copa do mundo, mas a crítica continuou sacaneando. Ninguém perdoa oito Oscars.
Cacá Diegues me conta que, em 89, viu o Theo Angeloupolos meter o dedo na cara do Bernardo e chamá-lo de traidor. Ele devia ter dado uma porrada no greguinho arrogante e metido a profundo.
A inveja era total. O Ettore Scola, medíocre assistente de Fellini e comuna burro, também liderou campanha contra o Bertolucci. "Filmava em inglês, não era mais italiano etc." E assim se passaram os anos, com Bernardo tentando injetar profundidade no "mainstream" e tentando ampliar comercialmente o cinema europeu.
Neste pêndulo, ele tem passado sua vida. E mais uma vez buscou o amor do pai europeu, filmando "O Céu que nos Protege", amparado no selo "profundo" do Paul Bowles, artista radical, sofredor, louco. Desta vez, os franceses adorariam, pensou.
Não adiantou. Os americanos detestaram, o filme foi um fracasso de bilheteria e a "Cahiers du Cinéma" disse que era um "desfile de modas no deserto". Ou seja, conseguiu não agradar ninguém. Era seu filme mais "cinema novo", desdramatizado, que valia existir nem que fosse pela genial amostragem antropológica da África.
Era belíssimo o filme, com excessos, atores geniais, trágico. Aqui também esculhambaram, pois aqui os críticos parecem até que vivem num "paraíso da arte", povoado por cidadãos kanes cantando na chuva.
Em todos os filmes de Bernardo se vê esse tema da oscilação entre a tradição e o novo. Isto está na vida do "Último Imperador" Pu Yi, está na relação Ocidente-Oriente, está até em Sidharta, o "buda" jovem que larga tudo para ser "comunista".
Em "O Pequeno Buda" vemos um Bernardo talvez deprimido de novo. Estará tomando mais vitaminas? Voltou para a análise? A depressão se percebe pela escolha de um filme anódino, quase spielberguiano, neutro, infantil. É como se ele quisesse se subtrair à amolação de criticas e comércio e ficar na terra de ninguém dos meninos e monges.
É estranho o filme. Não parece dele, ele renuncia aqui aos grandes "pedaços de bravura" dos travellings faustosos. Fica uma "mise-en-scène" da "National Geographic", como se o cineasta estivesse pedindo sossego.
Mas, de certa forma, "O Pequeno Buda" é antiItália, antiaquela coisa corrupta e faladora da Itália, contraposta a um elogio da contemplação não-ideológica. E agora Bertolucci, continuando seu calvário também doce, feito de fama e dinheiro e belas viagens pelo mundo, pretende fazer um filme na Itália, simples, íntimo. Mais uma vez, alguém o atacará.

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