São Paulo, sábado, 7 de maio de 1994
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Novas violências ocupam as telas domésticas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os vitrais das catedrais serviram como uma espécie de cartilha na Europa durante séculos. Os que sabiam ler –e eram em geral os frades– sabiam a própria língua, sabiam a língua da cristandade, que era o latim, e sabiam quase sempre o grego, que era a língua dos sábios.
O povão falava a língua local, que era às vezes um dialeto, e não sabia ler nada, nada. Mas aprendia a história sagrada e, quando entrava domingo na igreja, sobretudo se o domingo era de sol, via pegarem fogo os vitrais que lhe contavam histórias terríveis como a de Abraão afiando o facão para matar seu filho Isaac, ou a de Jesus deitado em cima da cruz enquanto lhe martelavam pregos nas mãos e nos pés.
Era a televisão da época, retratando a violência.
Claro que a história sagrada tinha um enredo conhecido de todos, que sabiam que no vitral seguinte o braço de Abraão seria detido pelo Senhor. Quanto ao Crucificado era fato sabido que ressuscitaria no terceiro dia.
Como a televisão não tem nenhum compromisso com qualquer sistema articulado de moral e nem de longe se relaciona com ultrapassadas crendices, os países que viriam a constituir o Primeiro Mundo trataram de, durante um longo e fecundo processo de civilização, alfabetizar suas massas antes de conceber e liberar os novos monstros.
A tecnologia oriunda da Revolução Industrial foi caminhando de mãos dadas com a educação do povo. Tornar todo mundo rico e ocioso era um sonho inatingível. Mas era perfeitamente realizável ensinar todos a ler, escrever, aprender um ofício.
Assim se generalizava, entre a população que crescia, a esperança de sair da miséria, de escapar a um viver que era apenas um esforço de não morrer moço, embrutecido, exausto. Estava inventada, entre os ricos e uma espécie de núcleo irredutível de pobres, a classe média. E a classe média por sua vez inventaria a democracia moderna.
Para pronta informação e relativo deleite da moderna democracia foram surgindo os jornais, veio depois a radiodifusão e finalmente chegou a televisão, que conta e mostra, na hora, o que está ocorrendo em qualquer parte do mundo.
Em seu conjunto o sistema de informação acabou ganhando o nome insosso e efeminado de mídia, mas, apesar do nome, está sendo acusado no mundo inteiro de disseminar a violência.
O grande alvo de acusação é a televisão, pelo fato de se instalar nos lares e prender a atenção mesmo das crianças que ainda não sabem ler e dos adultos que jamais saberão. Como o chocante, o violento, o sexo exacerbado têm mais público, a televisão mergulha cada vez mais fundo no horror.
Os ingleses, alarmados com recente crimes cometidos por crianças, buscam algum meio de controlar, sem a censura explícita, filmes perversos.
Nos Estados Unidos outro dia, pouco antes de se hospitalizar, o ex-presidente Nixon declarou, com vistas sem dúvida ao julgamento da história: "O caso Watergate só começou a prejudicar a opinião que havia de mim depois que a CPI iniciou seus trabalhos. O povo americano acha que nada é real até que apareça na televisão".
Assim também, quando esteve no Rio participando do seminário "Mídia e Violência Urbana", um professor e ensaísta francês, Henri Pierre Jeudy, disse que a mídia não se refere mais a meios de comunicação. Constitui um fim ela própria. "Hoje não podemos mais dizer que a mídia tem uma função de espelho em relação à sociedade, que ela `revela' a imagem da sociedade. Ela tem a sua autonomia, sua autarquia. Na mídia a imagem não é representação: ela representa apenas a si mesma. Ela é a alucinação do real."
Esse seminário –coordenado pela Fundação de Amparo e Pesquisa do Rio de Janeiro, Faperj– resultou num livro agora publicado que inclui depoimentos objetivos e frequentemente emocionados de Darcy Ribeiro, Gilberto Dimenstein, Paulo Sérgio Pinheiro, Jurandir Freire Costa e outros.
Depoimento dos mais interessantes e diretos é o do coronel Jorge da Silva, da Polícia Militar do Rio, que conta um passe de mágica realizado pela mídia.
O coronel Jorge da Silva trabalhou no planejamento da segurança da Eco-92, quando foram postos a patrulhar as ruas 15 mil soldados da PM, apoiados em mais 5.000 do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Como a mídia começou logo a falar em "segurança do Exército", ficou o povo confiante e tranquilo. E todos aplaudiram, depois da conferência, a perfeição que foi no Rio a segurança daqueles dias. Acontece que, naqueles precisos dias, registraram-se, só entre visitantes estrangeiros, 72 "ocorrências" na zona sul, 15 no centro, uma na zona norte e outra na zona oeste.
Mas, segundo o coronel, tão grande era a "predisposição" da mídia a achar que nada podia acontecer com tão luzida tropa na rua que... ficou o acontecido por não acontecido. Diz ele: "O fato é que ninguém noticiou nada! Até hoje muita gente pensa que o Rio virou um paraíso, uma ilha de tranquilidade durante a Conferência do Meio Ambiente –e graças ao Exército".
Durante o seminário, Darcy Ribeiro frisou uma vez mais –e deve continuar frisando, clamando no deserto– que sem educarmos as crianças jamais criaremos o Brasil com que sonhamos todos. E lembrou que ninguém vê cabras ou bois abandonados no Brasil, mas as crianças abandonadas contam-se aos milhões.
Muniz Sodré roçou o problema que me parece fundamental, ao declarar: "A homogeneização operada pelos meios de comunicação e por outros equipamentos urbanos desconhece radicalmente os focos catastróficos da pobreza, ou de sua obscena contiguidade com as zonas abastadas".
Para mim, o que há de mais assustador no rastilho de violência que se inflama pelo Brasil afora, é que suas consequências são imprevisíveis. Não temos os dados do problema, os meios de julgar. Que espécie de pessoa estaremos criando ao colocar a ignorância e a fome diante da telinha?
Como jamais acertamos o passo pelo passo das nações ajuizadas, e só nos preocupamos, até hoje, em manter uma pequena classe alimentada e educada, estamos agora, na verdade, sentando e amarrando um povo na era dos vitrais diante da fosforescência artificial e incansável da televisão consumista.
Milhões, dezenas de milhões de brasileiros analfabetos e esfomeados são condenados a assistir espetáculos muitas vezes de sádica violência, interrompidos de quando em quando para que tomem conta da tela hambúrgueres gigantescos ou fumegantes quartos de boi fatiados na churrascaria.
Como não sabem ler, a telinha para esses nossos patrícios contém o milagre total e único. Ali aprendem tudo, já que ninguém lhes ensinou nada e lhes foram retirados os vitrais, que pelo menos prometiam uma outra vida e não falavam, nesta, de maminha mal passada ou talharim al sugo.
Não sei de nenhum estudo dedicado a este suplício a que estamos submetendo milhões de brasileiros broncos e doentes. E que mal sabemos quem são. Quando "eles" aparecem na nossa televisão –os meninos nus e barrigudos, a mulher ao pé da panela vazia, o homem de cócoras no terreiro, esperando a chuva –trocamos, no controle remoto, de canal. Ou de vitral.

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