São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Gore Vidal escreve sobre Richard Nixon

GORE VIDAL

Fui acordado na madrugada do dia 23 de abril por um telefonema da rádio BBC. Richard Milhous Nixon enfrentara sua crise terminal pacificamente, durante a noite.
O apresentador do programa me disse, em tom grave, que tanto o ex-primeiro-ministro Edward Heath quanto Henry (que, infelizmente, nunca será ex) Kissinger haviam se referido ao 37º presidente norte-americano como "uma figura eminente".
Eu disse ao apresentador que o primeiro deve ter tido um sentimento de coleguismo por outro dirigente expulso de seu cargo, enquanto o único feito de Kissinger digno de chamar atenção haviam sido seus anos de trabalho como criador da política externa de Nixon. Se não fosse por isso, Henry não passaria de um professor de escola aposentado, ocupado redigindo "Son of Metternich".
Assim, tanto John Kennedy quanto Richard Nixon (Congresso, classe de 1946) estão finados –paladino e demônio, os dois recolocados na caixa de marionetes descartadas de um teatro e, aos olhos do futuro (ou de um futuro manejador de marionetes), intercambiáveis. Por que não um novo drama protagonizado por Jack Demônio e Dick Paladino?
Em seus atos políticos eles foram mais semelhantes do que diferentes, quando vistos sob um olhar de longo prazo e quando se enxerga a história nacional de sua época como simplesmente um clássico exemplo laboratorial de entropia cumprindo sua alegre tarefa sinistra. De qualquer modo, nós somos Nixon, ele é nós.
Entre lágrimas por um homem de quem apenas um punhado de norte-americanos se recorda, está se falando muito dos triunfos de Nixon no campo da política externa. Ele foi a Moscou e depois houve a distensão. Ele foi a Pequim e então viu a Grande Muralha. Outros presidentes poderiam haver feito o que ele fez, mas ninguém ousou fazê-lo por causa de Nixon.
Quando imagens de Johnson e Mao aparecem na tela, ouve-se aquele barítono solene: "Não estou dizendo que o presidente Johnson seja um comunista de `carteirinha'. Não. Sequer estou dizendo que sua presença naquela muralha signifique que ele seja comunista. Não. Mas eu questiono". Como havia sido atribuído a Nixon o papel de Nixon, não havia qualquer outro Nixon para impedi-lo de realizar aquelas divertidas excursões, ostensivamente em busca da paz.
Depois de ouvir os trompetes e tambores e assistir a nossos "bibliotecários" remanescentes –a posição de eminência que hoje atribuímos a ex-presidentes–, assisti a um vídeo de Nixon em sua época presidencial. Por alguma razão, a trilha sonora pifou. É um filme mudo. Um banquete oficial de alguma espécie. Nixon se lembra de sorrir, como as pessoas costumam fazer. Então um garçom se aproxima dele com uma sobremesa grande, corruptoramente grudenta. Naquele instante Nixon se inclina para conversar com a pessoa à sua esquerda, frustrando a tentativa do garçom de servi-lo. O garçom segue adiante. Nixon se reclina na cadeira e percebe que a sobremesa que seria sua foi entregue ao homem que está sentado à sua direita. Ele acena para o garçom, que não o vê.
Agora o rosto de Nixon está começando a assemelhar-se ao do terceiro monarca inglês de seu nome. Seus olhos se apertam e se dirigem primeiro à esquerda, depois à direita. Tudo bem, ninguém está olhando. Implacável rei Plantagenet, utilizando seu garfo como se fosse uma espada, ele recolhe metade da sobremesa que está no prato de seu vizinho e a coloca no seu próprio. Quando finalmente saboreia o doce, seus olhos mostram um brilho que nunca vi neles, nem antes nem depois. Ele está feliz. A torta paradisíaca está no seu prato, finalmente. Descanse em paz, Richard Milhous Nixon.

O norte-americano GORE VIDAL, 68, é escritor e dramaturgo. Escreveu, entre outros, "Lincoln", "Burr", "Washington D.C." e "Criação".
Tradução de Clara Allain

LEIA
Capítulo de livro de Nixon às págs. 4 e 5

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