São Paulo, sábado, 14 de maio de 1994
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À espera do real

ADROALDO MOURA DA SILVA

A nova moeda, o real, estará circulando a partir de julho. Suas regras básicas de emissão ainda não foram enunciadas, mas há uma enorme expectativa positiva: desta vez estaremos dando início a um efetivo programa de estabilização.
Seria importante, pois, começar a nomear o roteiro de criação desta nova moeda a fim de identificar suas peculiaridades. A seguira, seguem algumas lições básicas que devem instruir a criação desta nova moeda.
1) De um modo ou de outro, o governo tem recorrido, há décadas, abusiva e às vezes até inadvertidamente à emissão de moeda para cobrir suas necessidades de financiamento. Há uma enorme irresponsabilidade institucional na gestão monetária e na gestão fiscal do governo. É preciso parar com tal orgia.
Neste quadro, a credibilidade na nova moeda demanda, no mínimo, que as decisões de emitir ou contrair o estoque nominal de base monetária fique totalmente fora do poder discricionário do governo.
Nasce aí a necessidade de se impor uma regra bastante simples e educativa de criação ou destruição de base monetária: a autoridade monetária cria moeda se, e somente se, um "agente privado" (pessoa física ou jurídica vender voluntariamente moeda estrangeira ao órgão emissor; e poderá "destruir" ou contrair o estoque de papel moeda em poder do público ou a reserva bancária se "um agente privado" decidir comprar moeda estrangeira. Tudo isso a uma taxa de câmbio fixa. O exemplo argentino é o que há de mais próximo desta coisa.
2) O bom funcionamento deste regime depende de dois mecanismos básicos de mercado: o de taxa de juros e o do mercado de trabalho. A integração financeira do Brasil com o resto do mundo é hoje uma verdade inconteste.
Juros elevados no real, devem atrair expressivo volume de aplicações de não-residentes para o mercado de capitais do país. Este ingresso de recursos a um só tempo deve reduzir a taxa de juro nominal e propiciar a expansão da base monetária requerida pela expectativa de estabilidade advinda da nova moeda. "Mutatis mutandis", juros baixos no real contrairiam o estoque de base monetária.
O segundo mecanismo opera através de preços e salários. Tudo o mais constante, aumento de preços e salários produz valorização da taxa de câmbio, desestímulo às exportações, incentivos às importações e assim déficit em nossas transações correntes com o resto do mundo. Deste modo, a dinâmica econômica reduz endogenamente o estoque nominal de base monetária...
Operariam bem estes mecanismos no Brasil de hoje? Hoje temos todas as condições propícias para fazer funcionar bem estes mecanismos. Este tipo de coisa engasga somente quando for necessário contrair o estoque nominal de moeda através de quedas de preços e salários. Felizmente este não é o nosso caso agora.
3) A introdução do real é condição "sine qua non" para se obter a estabilidade. Não é, contudo, condição suficiente para mantê-la de forma permanente. Esta condição só será obtida quando se desenvolver mecanismos de longo prazo que nos permitam acreditar que o Tesouro Nacional não continue a produzir um descalabro fiscal.
É vital pois que a implantação do real seja vista como o início do programa de ajuste fiscal. Seja entendida como um compromisso do governo em promover a reforma fiscal e patrimonial. É daí que nasce a necessidade do lastro.
Mais importante ainda: este compromisso deve cristalizar na letra da lei tanto as regras do lastro quanto às da taxa de câmbio. É evidente que esta coisa toda não é irreversível. Dois ou três anos de inflexibilidade na gestão monetária é um custo muito baixo, a até inevitavel, a ser enfrentado para dar cabo à selvagem e irresponsável gestão monetária do últimos 30 anos.
4) É bom não temer a inflexibilidade temporária que um regime deste tipo impõe ao país. Hoje qualquer flexibilidade pode destruir o próprio programa, por também insinuar que nada será diferente das experiências passadas.
O maior temor advém de uma possível valorização da taxa real de câmbio nos próximos dois ou três anos, a exemplo do que ocorre hoje na Argentina. Este é um temor infundado.
Esta valorização poderia bem ser compensada por medidas hoje necessárias na área fiscal, tais como: a) eliminação do ICMS que hoje incide sobre os produtos exportados; b) eliminação da incidência dos tributos que ocorre em cascata, a exemplo do IPMF; c) redução dos encargos que incidem sobre a folha de salário, e para o imposto de renda; d) redução do custo de capital e ampliação da produtividade do sistema econômico propiciada pela simples eliminação da taxa de inflação que consome enormes recursos no manuseio de ativos financeiros e coisas afins.
Ademais, é bom não esquecer que hoje temos um saldo de balança comercial muito além do nível consistente com nossas necessidades de crescimento econômico.
5) A possibilidade de problemas futuros não pode nos imobilizar. A valorização do câmbio real no futuro é um problema a ser administrado no futuro. Hoje urge acabar com a inflação.
Para tanto, é preciso ter claro que o governo, após décadas de descalabro monetário, hoje não tem a menor condição política e administrativa de manusear, com sucesso e discricionariamente, o poder de emitir a nova moeda.

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