São Paulo, sábado, 14 de maio de 1994
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Memória de múmia

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – O poeta Manuel Bandeira saiu de casa, tomou o ônibus na esquina, sentou, ajeitou os óculos de míope para ver a paisagem. O ônibus fez uma curva e o poeta viu um tanque –ainda não eram os urutus de hoje, eram velhos os tanques, "made in U.S.A.", sobras de guerra que o governo Dutra recebera como pagamento de não sei o quê.
O poeta se irritou: um tanque, ali, na esquina onde morava, apontando o cano sinistro para os outros ônibus, os carros, os transeuntes! Chegou ao jornal e escreveu uma crônica: "Vi um espetáculo obsceno: um tanque na rua, apontando para o povo".
Explica-se: foi em novembro de 1955, quando os militares impediram Café Filho de voltar à Presidência. Café estava envolvido no golpe para impedir a posse de JK. O Exército veio para as ruas e, apesar da obscenidade que tanto chocou o poeta, a democracia foi servida.
Nove anos depois, os tanques vieram novamente para a rua e o poeta não os achou indecentes. Pelo contrário: louvou-os com entusiasmo. Donde se conclui: canhão é obsceno de acordo com o lado que defende ou ataca. Se aponta contra mim, é obsceno, depravado, ligado ao tóxico e ao bicho. Se é a meu favor, torna-se um santo, um imaculado canhão, bendito entre os benditos.
Nessa semana, tropas do Exército vieram para a rua a fim de garantir a ordem. Tudo bem. Mas é bom que os episódios de agora não sirvam de ensaio geral. Sou a favor da participação dos militares no policiamento das grandes cidades –as forças estaduais e municipais são insuficientes para combater a atual onda de violência. Mas não gostei daqueles helicópteros despejando soldados na esplanada dos Ministérios. O problema não era ali, era no prédio da Polícia Federal, onde realmente se justificava a presença das Forças Armadas.
Quando Getúlio mandou fechar o Congresso, em 1937, precisou de menos gente e menor aparato. Em 1964, nem foi preciso mandar fechar o Congresso: ele se fechou a si próprio, pois continuou a funcionar para coonestar a violência. Não sei por que estou lembrando essas coisas. Deve ser memória de múmia.

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