São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jordan se aventura pela tela da linguagem

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

" `Night in Tunisia' é o meu livro do ano... O controle preciso do tom, do estilo e da narrativa de Neil Jordan merece comparação com outros mestres irlandeses do conto, de O'Connor, O'Faolain até Joyce".
Esse foi o tom de surpresa e entusiasmo com que o crítico literário da revista "Time Out" recebeu a coletânea de contos de neil Jordan, o jovem escritor e cineasta, conhecido sobretudo pelos seus filmes "Companhia dos Lobos", "Mona Lisa"' e mais recentemente "Traídos Pelo Desejo", que ganhou o Oscar de roteiro original em 92 e foi indicado para melhor filme.
Se você achar que o louvor soa um pouco exagerado, então veja o que disse o próprio Sean O'Faolain, um dos maiores escritores irlandeses contemporâneos, sobre o livro: " `Night in Tunisia' é uma das mais notáveis histórias que eu já li na linhagem do conto irlandês, desde ou até mesmo antes, de James Joyce."
Até a pouco tempo Neil Jordan era muito pouco conhecido como escritor, apesar de já ter publicado três livros –"Nigth in Tunisia", "The Past" e "The Dream of a Beast". Eles foram todos publicados originalmente numa pequena cooperativa de escritores de Dublin, a Irish Writer's Cooperative e uma sua correspondente em Londres, a Writers end Readers Publishing Cooperative, num tempo em que essas ousadias editoriais ainda eram possíveis, em meio à confusão punk de meados dos anos 70.
As edicões foram pequenas e a circulação mínima, o que limitou o impacto dos textos. Os três livros foram republicados no final do ano passado pela editora Vintage e lançados em 94.
Todos foram elogiados, mas "Night in Tunisia" foi de longe o mais apreciado, levando duas das maiores láureas literárias inglesas, o Somerset Maugham Award e o The Guardian Fiction Prize. Não é pouco, especialmente se considerarmos que Jordan tinha apenas 25 anos quando escreveu o livro.
As insistentes comparações com Joyce têm tudo a ver. O livro todo mantém uma sutil mas inequívoca correspondência com os contos de "Os Dublinenses", se casual ou deliberada não se sabe, nem importa.
Ambos têm um tom vagamente evocativo, uma percepção densamente personalizada das experiências, uma realidade inerte, vidas sem eventos, uma atmosfera permanente de expectativas jamais consumadas, uma insularidade claustrofóbica, pendores frustrados para o improvável e o impraticável. A linguagem é sóbria, porém lírica e culta.
Alguns personagens parecem recorrentes ao longo dos contos, mas mesmo isso fica obscuro porque eles reaparecem repostos em perspectivas diferentes, presos a outros jogos contextuais. A afinidade chega a um climax justamente com o conto de Joyce chamado "Araby", com sua atmosfera de nostalgia por um exotismo desejado embora nunca experimentado e nem um pouco real.
As diferenças entre os dois textos por outro lado não são menos significativas. A percepção do mundo dos personagens de "Night in Tunisia" é subjetiva por completo e anti-realista no sentido em que assinala antes distorções emotivas que situações concretas. Nesse sentido, a propósito e se for para levar a comparacão adiante, lembra mais o foco narrativo de um romance de Joyce, do "Retrato do Artista Quando Jovem".
O cenário também não é propriamente urbano, recaindo sempre sobre a situação muito artificial das pequenas cidades à beira-mar da costa oeste da Irlanda, transformadas por falta de alternativas em estâncias de férias baratas. Os personagens são desempregados, trabalhadores pobres ou uma pequena classe média à beira da extinção.
Se há teor político é oblíquo e fica por conta das inferências do leitor. Nada é tipicamente irlandês, exceto talvez o tom crítico do autor a uma vacuidade cultural, inércia isolacionista e conservadorismo de pálida tintura religiosa. Esse tom é essencial, porque o que detona as narrativas é o som lingínquo do be bop jazz emitido do outro lado do Atlântico. O lado do desejo.
Os contos enfocam sobretudo a experiências decisivas e irreversível de passagem da infância à adolescência, da adolescência à idade adulta. Os diferentes e definitivos degraus da perda da inocência, da aquisição daquela dor latente que é o sintoma definidor da consciência, da instalação na alma da nostalgia de algo perdido irremediávelmente, mal compensado pelo anseio de algo que jamais se terá.
Os rapazes vagam pelas praias, observando as garotas de longe, com terror e ereção. Se masturbam pelos arbustos, comentam como todas, secretamente, se deixam tocar por dinheiro, que eles nunca têm.
Só o tédio é maior que a frustração, mas o horror ao mundo adulto é ainda maior que o tédio. A única experiência total, capaz de implodir o tédio e dissolver a cadeia da autoridade se chama Chralie Bird Parker. Quando ele diapara seu turbilhão dissonante, o mundo para, o sol se põe: é noite na Tunísia.

Hoje excepcionalmente deixamos de publicar o artigo de David Drew Zingg

Texto Anterior: Bonde de "Éramos Seis" ofusca a atriz!
Próximo Texto: Cinema do diretor joga com verdades e mentiras
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.