São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
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Cesaria Evora fuma e triunfa no Sesc

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O público de "caetanetes" não obscureceu o desempenho da cantora cabo-verdiana Cesaria Evora e grupo anteontem em estréia no teatro do Sesc Pompéia.
Foi noite memoranda, apesar da participação digressiva e superficial do cantor e compositor Caetano Veloso. Boa parte da platéia estava lá para vê-lo e o aplaudiu mais que a Cesaria.
O episódio pode ir aos anais de um possível tomo sobre a "idiossincrasia brasiliana" –esse desvio de conduta típico do nosso público, que pensa pelas orelhas e consagra por tabela. Um desafio para os lombrosianos.
Cesaria foi ungida porque Caetano surgiu no ponto culminante do espetáculo, a conduzir o coro do seu "Leãozinho" e ironizar o próprio "papo-aranha" com "Qualquer Coisa".
Chamar Caetano funcionou como estratégia de marketing para atrair público. O clima quente era de tietagem generalizada.
Até a cantora Angela Maria recebeu aplausos sem cantar um dó, apesar dos pedidos do público, puxado pelo cantor Edson Cordeiro (praticante e atual procurador de "Babalu").
Caetano citou Angela esboçando ao violão o samba "Fósforo Queimado" (Paulo Marques, Milton Legey e Roberto Lamego), sucesso da cantora nos anos 50.
Depois, cantou em dueto com Cesaria "Negue " (Adelino Moreira-Enzo Barros) e "Se Acaso Você Chegasse"(Lupicínio Rodrigues-Felisberto Martins).
A cantora escolheu essas músicas de propósito. A primeira lembra uma morna e a segunda, uma coladeira. São dois gêneros tradicionais do Cabo Verde.
Morna é a canção lenta e triste, remissiva ao fado, ao samba-canção e à milonga. Coladeira consiste em música dançante, com compasso binário acelerado.
Ela interpretou os clássicos do "troveiro" cabo-verdiano B.Leza (1905-1958) e de autores jovens, como Ramiro Mendes, autor do "hit" da noite, a coladeira "Angola", acompanhada pelas palmas do público.
Cesaria escorregou no tempo dessa música, mas sem consequências no resultado. Ela e os quatro músicos impressionaram pelo despojamento com que montaram no palco um verdadeiro botequim de Mindelo.
Houve, porém, um problema de equalização do som. Os três instrumentos de corda –violão, cavaquinho e viola– praticamente desapareceram diante da alta amplificação do piano. Isso criou um resultado sonoro distorcido.
As músicas ficaram sem a riqueza rítmica e harmônica original. O público não sentiu a levada em "rubato"(mudanças de ritmo através dos compassos) do violão e as síncopes (alterações no tempo forte) do cavaquinho.
Os achados de acordes de B.Leza também se perderam. Mornas como "Miss Perfumado" e "Bia", de B.Leza, remetem à harmonização simples e em tom menor de um Cartola. Mas criaram-se vazios harmônicos que afastaram a atenção do público para os detalhes da arte de B.Leza.
Com a equalização falha, o piano carregou o show nas costas. O pianista e arranjador Paulino Vieira, 38, não teve dificuldades de segurar o espetáculo. É um dos maiores músicos do Cabo Verde. Parece ter saído de um clube da Lapa carioca dos anos 20.
Ele toca um "stride piano"(percutido e dançante, com influências do jazz) quase delinquente. Como se não bastasse, recolhe do fundo de uma experiência de dez anos de cabaré em Lisboa um estilo tangado anacrônico e saboroso.
Cesaria pisava com autoridade pela exuberância de seus músicos. De pés descalços (para fazer jus ao epíteto de "diva dos pés nus") e enfumaçada por cigarros que acendia a cada três minutos, mostrou um timbre translúcido e o alcance de mezzo soprano.
Sua interpretação se revelou intensa. Cada palavra foi experimentada. Depurou nota a nota com supersensibilidade.
Possui um dom congênito que a livra da atuação desmedida (e tão fatal em algumas intérpretes da MPB). Põe a canção para se impor sozinha, sem ligas teatrais.
Calcula a comoção em tom menor das mornas. Dança descontraída nas coladeiras. O cigarro só fez a sua voz melhorar. Além de fornecer um clima noturno e politicamente incorreto ao espetáculo.
Tudo leva a crer que a ausência de Caetano preencherá uma lacuna nos próximos shows da cantora. Ela se apresenta até domingo.
Quem for só para ouvi-la não perderá viagem. É um dos melhores shows da temporada. Está cada vez mais difícil encontrar uma voz que seja sincera. Cesaria Evora interpreta como fuma e bebe. É a diva de um canto em extinção.

Show: Cesaria Evora
Músicos: Armando Antonio Boaventura (violão), Antonio Vieira (cavaquinho), Oswaldo Dias (viola) e Paulino Vieira (piano e arranjos)
Onde: Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 011/864-8544, ramais 111 e 135, Pompéia, zona oeste)
Quando: hoje e sábado, às 21h, e domingo, às 20h
Quanto: CR$ 25 mil (visitante), CR$ 12,5 mil (comerciário e estudante) e CR$ 20 mil (usuário inscrito)

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