São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinema português reafirma sua força

LÚCIA NAGIB
ENVIADA ESPECIAL A CANNES

Portugal conseguiu uma posição invejável na produção de cinema de autor. São raras as cinematografias hoje que se expressam com a mesma liberdade criativa, desprezando as imposições do mercado e mesmo assim alcançando considerável repercussão mundial.
Em Cannes, Portugal chamou a atenção com dois filmes, na Quinzena dos Realizadores: "A Caixa", de Manoel de Oliveira, e "Três Palmeiras", de João Botelho.
Participa ainda, no sábado, da mostra Um Certo Olhar com "Casa de Lava", de Pedro Costa, diretor considerado a revelação da nova geração.
Neste panorama, o velho mestre Manoel de Oliveira continua sendo a surpresa maior. Depois de praticamente inventar o cinema português ainda no período mudo, Oliveira consolidou o espaço para a experimentação.
Modernizou a interpretação dos atores, reaproveitou a literatura, o teatro, a música, estabeleceu uma técnica narrativa própria e colocou-se entre os grandes cineastas de todos os tempos.
Hoje, do alto de seus 86 anos, não dá sinal de cansaço, produzindo ultimamente um filme por ano. Depois de "Vale Abraão", versão de "Madame Bovary" que maravilhou a platéia paulistana na Mostra Internacional do ano passado, Oliveira surge com uma adaptação teatral em "A Caixa", história de um cego que tem sua caixinha de esmolas roubada.
O cego só podia ser Luís Miguel Cintra, ator de teatro que se tornou indispensável para Oliveira desde 1985 e a essa altura é quase "co-autor" de seus filmes.
Cintra revelou à Folha um pouco de sua experiência com o diretor.

Folha – Você poderia comentar a adaptação da peça de Prista Monteiro em que se baseia "A Caixa"?
Luís Miguel Cintra – Manoel transformou-a num conto alegórico. As personagens não compõem o retrato da miséria num beco português, mas uma constelação quase abstrata.
A Manoel não interessa fotografar a realidade. Embora o beco seja verdadeiro, parece um cenário feito em estúdio.
A miséria tem, no filme, um sentido filosófico e político forte. Manoel está a dizer que as pessoas pobres não podem ser felizes nem boas.
Folha – Você disse que, no início, Oliveira era considerado um mau diretor de atores.
Cintra – Quando comecei a filmar com ele, com "Le Soulier de Satin", adaptação de uma peça de Paul Claudel, ele era acusado de não saber dirigir atores.
Mas Manoel fazia planos longuíssimos, nos quais os atores praticamente recitavam seus diálogos diante da câmera.
Isso não significava que representassem mal, mas apontava um gosto pela artificialidade. Essa idéia tornou-se cada vez mais complexa.
Em "A Caixa", eu mesmo ajudei a trabalhar a artificialidade do jogo dos atores, que é quase expressionista.
Folha – Você recebe convites de produções Internacionais?
Cintra – Já ultrapassei essa fase, e as pessoas já deixaram de me convidar porque sabem que não aceito.
Folha – Como sobrevive em Portugal esse tipo de arte independente?
Cintra – Os filmes são subsidiados pelo Estado, não há outra solução. Para alguma coisa serviu o 25 de abril: criou-se um sistema de produção independente do mercado que deu frutos.
Pena que hoje se queira destruir isso em nome do audiovisual.

Texto Anterior: Cesaria Evora fuma e triunfa no Sesc
Próximo Texto: João Botelho prossegue luta de Oliveira
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.