São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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A inflação brasileira não é o que parece

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se tudo fosse o que parece, o pensamento científico seria supérfluo. A terra continuaria sendo o centro do universo, as espécies biológicas seriam imutáveis e a equivalência entre matéria e energia seria impensável. As aparências fazem parte do mundo, mas não o esgotam. Duvidar é um dever científico.
A ciência econômica não ostenta descobertas universalmente aclamadas, comparáveis às de um Copérnico, Darwin ou Einstein. Mas isso não invalida a tese de que, também na economia, nem tudo é o que parece.
As certezas sensíveis iludem e as aparências enganam. O efeito imediato ofusca a causa remota. Sintomas doem na pele e "roubam a cena" da origem do mal. Muitas vezes, é a própria familiaridade com o fenômeno que gera uma falsa sensação de conhecimento.
Considere, por exemplo, o caso da inflação. À primeira vista, o diagnóstico é simples. Inflação é, por definição, aumento persistente no nível geral de preços. Logo, a causa da inflação é gente remarcando preços. Basta olhar ao redor e ver a inflação brotando. Culpados é que não faltam.
São os oligopólios fazendo conluio para recompor margens de lucro e espoliar os consumidores; é o empresariado ineficiente que repassa qualquer aumento de custos para os preços; é a elite gananciosa que só pensa em engordar os lucros; é o atravessador sem escrúpulos e o varejista esperto remarcando preços na calada da noite.
É, em suma, a horda de aproveitadores, especuladores e sócios da inflação manipulando o mercado, corrompendo o governo e aproveitando cada brecha para "levar vantagem" no conflito distributivo.
Que tudo isso existe –e não apenas no Brasil– quem negaria? Como já alertava Adam Smith, "gente do mesmo ramo de negócios raramente se encontra, até mesmo para entretenimento e diversão, sem que a conversa termine em conspiração contra o público ou em algum conluio para elevar os preços."
Ou, como diria Weber, frisando que esse tipo de conduta nada tem a ver com o capitalismo: "em todos os períodos da história, sempre que foi possível, existiu o impulso à aquisição implacável, sem qualquer norma ética para limitá-lo".
A falácia é imaginar que a inflação tem como causa a disposição a remarcar preços. Afinal, em qualquer lugar do mundo, quem vende alguma coisa no mercado seguramente gostaria de obter um melhor preço pelo que faz.
Empresários, banqueiros, trabalhadores, profissionais liberais, trambiqueiros –quem não deseja melhorar sua remuneração ao menor custo? Deste desejo depende toda a lógica da economia de mercado.
Mas, nos países onde o sistema de preços funciona, embora todos desejem ganhar mais pelo que fazem e busquem incessantemente melhorar a sua remuneração, o nível de preços permanece estável.
Escolha qualquer país desenvolvido do mundo –a inflação acumulada é inferior a 5% nos últimos 12 meses em todos eles. Será que os oligopólios e patrões de lá são menos agressivos e oportunistas que os daqui? Mas, se todos querem mais, e tantos parecem prontos a apelar vergonhosamente para conseguir isso, o que segura os preços?
O mais surpreendente é que esta estabilidade se mantenha sob um regime da mais completa e absoluta liberdade de preços. Em nenhum país desenvolvido do mundo existe congelamento, tabelamento ou controle de preços.
A inflação é ínfima e isso acontece não porque haja um órgão estatal encarregado de policiar os preços ou porque as pessoas tenham um espírito patriótico e zelem para que os preços permaneçam estáveis.
Pode parecer misterioso, mas não é. O que mantém os preços na linha e impede que todos tentem melhorar seus rendimentos pela via mais fácil e cômoda, ou seja, simplesmente aumentando o preço do que vendem, é a existência de um mecanismo automático e impessoal chamado ação disciplinadora do mercado.
O conflito distributivo e o desejo de remarcar preços são universais. Eles são o próprio combustível da economia de mercado. O que impede que eles virem inflação é a pressão competitiva de todos contra todos –o medo e a certeza de que, ao se tentar subir o preço e ganhar mais a troco de nada, a punição virá na forma de uma perda de mercado para os concorrentes.
A competição e a contestabilidade dos mercados são dispositivos muito mais poderosos do que qualquer autoridade estatal ou apelo ao senso moral.
Mas, se a inflação brasileira não é o que parece, ou seja, o simples efeito agregado das ações de gente disposta a remarcar preços, então o que é? A resposta, a meu ver, tem duas partes.
A primeira está contida no raciocínio acima. A economia brasileira ainda carece de um ambiente competitivo que mantenha os agentes econômicos sob os rigores de uma verdadeira disciplina de mercado.
Embora algum progresso tenha sido feito nos últimos anos, ainda há muito por fazer. Não é da noite para o dia que se desfaz o imbróglio gerado por décadas de fechamento e estatização.
Para muitas empresas do setor privado, o mercado político sempre foi e continua sendo a alma do negócio. Boa parte do setor privado brasileiro é, na verdade, paraestatal. Ao mesmo tempo, ainda vivemos num país onde até a importação de derivados de petróleo é monopólio de uma única empresa estatal.
A outra causa básica da inflação tem a ver não com a microeconomia do setor produtivo, mas com o desequilíbrio financeiro do Estado. Saber, nas atuais condições, a verdadeira dimensão do déficit público brasileiro, é tarefa impossível.
Uma coisa, no entanto, parece clara: falta-nos uma restrição orçamentária firme para os gastos do setor público como um todo. Sem ela, qualquer tentativa de estabilização terá vida curta.
A conclusão básica disso tudo é que os fundamentos da estabilidade –liberalização e ajuste fiscal– ainda não estão suficientemente maduros no Brasil para garantir uma vitória permanente sobre a inflação. A batalha decisiva deverá ocorrer no início do próximo governo.
O Plano Real tem condições de nos levar até lá com um mínimo de estabilidade, o que não é pouco. Mas é difícil imaginar que ele possa ser mais do que um episódio na odisséia brasileira rumo à moeda estável. Itaca é longe. O BC promete atar-se ao mastro do navio. Cantos de sereia é que não faltam.

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