São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Uma educação pela poesia

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sem desprezar outros complexos da obra de João Cabral, vou considerar apenas um traço, um modo de relação entre poeta, poesia e leitor; a maneira pela qual é possível extrair da poesia uma lição que o poeta dá ao leitor e a si mesmo e de que ele faz um modo de ser próprio de sua poética.
Não se trata somente de registrar os momentos de meditação acerca de poema, quer como movimento de construção, quer como espaço a ser ocupado pela experiência, mas como um percurso de aprendizagem a que o poeta se obriga e, se obrigando, passa a ler nos objetos possíveis de sua linguagem lições de poética.
Já em seu primeiro livro, de 1942, "Pedra do Sono", a preseça de textos em que a própria operação poética aparece como tematizada se, por um lado, apontava para a insidiosa consciência de "fazer", por outro lado, esta mesma consciência se passava, por assim dizer, nas relações entre poeta e conteúdos de um "dizer" possível. Para exemplo, sirva o primeiro texto, "Poema", do livro de 42:
"Meus olhos têm telescópios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas!
Há 20 anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando.
meu retrato eu morto."
Este sentido de relações entre poeta e objetos possíveis de poema, que quase sempre apontam para as tensões entre subjetividade e fuga dela, uma aprendizagem que, no primeiro livro, se expande em composições que incorporam conteúdos de outras linguagens (André Masson e Picasso, por exemplo), será também dominante no livro seguinte, "O Engenheiro", de 1945, como acontece no texto que tem por título precisamente "A Lição de Poesia", embora em outros casos, como ocorre no poema "O Engenheiro", o aprendizado já se faça mais sutil e se configure antes como uma leitura de linguagem, de forma, do que de conteúdos manifestos.
Sendo assim, a segunda estrofe daquele poema embaralha instrumentos de construção, próprios do engenheiro, e conteúdos decorrentes de sua utilização:
"O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo
justo,
mundo que nenhum véu encobre".
Fundado numa intensa negatividade acerca das relações entre poeta e poesia, o tríptico, por assim dizer, esvazia a carga de subjetividade perigosamente autocomplacente que rondava os primeiros livros, incertezas e descaminhos de um lirismo herdado, e prepara, por outro lado, o caminho para uma apreensão corrigida da realidade.
Esta apreensão, no entanto, traduz um aprendizado de mão dupla: é o poeta que aprende com a linguagem da poesia e é o poema que aprende com a linguagem dos objetos da realidade. Entre poesia e realidade, o poeta faz do poema um instrumento de aprendizagem.
A partir de "O Cão Sem Plumas", de 1950, está traçado o caminho desse aprendizado: não uma tradução de conteúdos mas uma recuperação de elementos e articulação que possibilitaram aqueles conteúdos.
Sendo assim, a apreensão do rio Capibaribe se faz antes pela desmontagem metafórica, pela redução a uma linguagem desemplumada, do que pela acumulação de sentidos, ainda quando tais sentidos pudessem revelar o inverso de sua apreensão habitual. O poeta "ensina" o rio Capibaribe porque foi capaz de aprender, "sem plumas", com suas paisagens, fábula e discurso. O resultado é um "falar com coisas", como ele mesmo dirá, muito mais tarde, e com muito humor, em texto de "Agrestes":
"As coisas por detrás de nós,
exigem felemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarréia."
Embora tais procedimentos sejam, em grande parte, responsáveis pela maneira com que o poeta vai fazendo a sua poesia nas obras publicadas nos anos 50, encontra nos caminhos adequados para falar de "coisas", nordestinas, ou espanholas, chamem-se mortes e vidas severinas, o rio Capibaribe, paisagens e gentes de sua região ou da Espanha, tudo culminando no alto teor reflexivo de "Uma Faca Só Lâmina", de 1956, é na década seguinte, com "Terceira Feira", de 1961, reunindo "Quaderna", "Dois Parlamentares" e "Serial", e sobretudo dom "A Educação pela Pedra", de 1967, que estará, por assim dizer, completo o processo de aprendizagem do poeta.
O próprio título da última obra da década indicia o périplo cumprido: de "Pedra de sono" à "Educação pela pedra", quer dizer, daquilo que já se insinuava como consciência na primeira obra, em que o lado onírico, fluido e evanescente da poesia é travado pela solidez, consistência e resistência do primeiro termo (não importando que o título tenha a sua origem em nome de pequena cidade encontrado, por acaso, em mapa da região do poeta) a um aprendizado explícito com aquele mesmo elemento capaz de definir a totalidade dos textos como antilírica, como o próprio poeta dirá em sua dedicatória ao grande lírico Manuel Bandeira.
Mas entre estas obras e as que publicará depois – a única da década de 70 –, "Museu de Tudo", e as cinco dos anos 80-, João Cabral organiza, em 1962, uma antologia de seus próprios textos, no volume "Poesia crítica", em que mais do que esclarecer, para o leitor eventual (sejam outros poetas e críticos), o roteiro de seu aprendizado, vem revelar a consciência do próprio poeta de uma certa leitura de sua poesia, constituindo-se numa verdadeira educação pela crítica.
E isto não é revelado pela própria estrutura da antologia: numa primeira parte, "Linguagem", estão os poemas que tomam por assunto a criação poética e, numa segunda, "linguagens", poemas que tratam, como diz João Cabral na "Nota do autor", da "obra ou a personalidade de criadores poetas ou não". Mais do que diz o poeta, no entanto, esta segunda parte da antologia é muito rica na demonstração daquele aspecto de sua poética para o qual venho chamando a atenção: não são apenas obras ou personalidades de criadores, sejam poetas ou não, que são lidos por João Cabral, mas, sobretudo, objetos da realidade, "coisas", de que são extraídos modos de ser, formas, linguagens.
E isto pode ser tanto Rilke, Proust, Graciliano Ramos ou Vicente do Rego Monteiro, quanto "El cante hondo", a secura e a unidade do Nordeste, o Teatro Santa Isbeldo Recife, toureiros espanhóis, os movimentos diversos das jogadas de Ademir da Guia ou de Ademir Menezes. Uma espécie daquilo a quem chamei, em livro sobre o poeta que compreendia a sua obra até "A educação pela pedra", de "imitação da forma", ou seja, uma mímese de linguagens.
Daí duas consequências de grande importância para a poética de João Cabral: o realismo, a concreção de sua poesia e as tensões entre transitividade e intransitividade de seus enunciados. Na verdade, fazer da linguagem da poesia um espaço aberto para o aprendizado com outras linguagens é não apenas ampliar o leque possível das nomeações, mas assumir o risco das tensões entre fazer e dizer.
E na própria "Nota" referida da antologia, o poeta assume o problema, ao afirmar: "Quanto à idéia de, em poesia, falar de poesia ou de outras formas de criação, crê o autor que ela só parecerá coisa estranha a quem ignora tudo o que escreveu. Quem teve contato com pouca parte de sua obra, sabe que ele nunca entendeu a linguagem poética como uma coisa autônoma, intransitiva, uma fogueira ardendo por si, cujo interesse estaria no próprio espetáculo de sua combustão: mas como uma forma de linguagem como qualquer outra. Uma forma de linguagem transitiva, com a qual se poderia falar de qualquer coisa, contando que sua qualidade de linguagem poética fosse preservada.
A cláusula restritiva final diz tudo: a transitividade é limitada pela qualidade específica da linguagem poética. Uma especificidade que não se encerra em si mesma mas que se renova através da aprendizagem com outras linguagens. Em três obras que publicou nos anos 80 -"Auto do frade", "Agrestes" e "Crime na Calle Relator" – e deixo de considerar as demais por já ter delas me ocupado em textos publicados, pode-se detectar a continuidade desse processo de aprendizagem, sobretudo através da retomada e ampliação de alguns temas básicos.
Assim, por exemplo, o "Auto do frade", articulando-se claramente com o processo compositivo da obra de 1955, "morte e vida severina", acrescenta um elemento fundamental a linguagem poética de João Cabral no sentido de sua leitura da realidade: passa-se do social ao histórico sem que haja uma negociação do primeiro, mas sim a sua incorporação, não através de uma apreensão de incidentes apenas anedóticos (o que, sem dúvida, compõe também o quadro da narrativa histórica), mas pela exploração poética das tensões básicas, encarnadas por Frei Caneca entre a razão pragmática do político rebelde e as elocubrações mais abstratas, lógicas, retóricas, folosóficas, de quem também era um herdeiro da ilustração.
Por isso mesmo, os registros populares e eruditos (respectivamente enunciados pelo coro, a multidão que assiste ao sacrifício do Frei, e pelos monólogos do Caneca) são "imitações" tensionadas de uma história que a ficcionalização do "Auto" busca recuperar sem apaziguamentos retóricos. Uma educação pela história.
Por outro lado, em "Agrestes", de 1985, livro que, na obra do poeta, pode ser articulado. "Paisagens com figuras", de 1956. (Aos temas nordestinos e espanhóis acrescentando-se agora os africanos e os hispano-americanos), a variante está na presença da morte individualizada como tema, na parte intitulada, em homenagem a Manuel Bandeira, de "A indesejada das gentes".
É curioso observar que no livro seguinte, "Crime na Calle Relator", de 1987, no poema "O exorcismo", um diálogo entre o poeta e o psiquiatra, é levantada a questão de porque tantos textos escritos sobre a morte. Resposta do poeta: "Nunca da minha, que é pessoal, mas da morte social, do Nordeste". E o diagnóstico final da última estrofe pela voz do interlocutor:
"Seu escrever de morte é exorcismo,
Seu discurso assim me parece:
é o pavor da morte, da sua,
que o faz falar da do Nordeste".
É um texto que parece saído do livro anterior, embora em nenhum poema de "Agrestes" seja a morte subjetivizada, sendo sempre apanhada em situações narrativas que se encarregam de criar um espaço de objetividade. Mesmo falando da morte, o poeta está falando de "coisas"e, mais uma vez, aprendendo com elas. Uma educação pela morte.

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