São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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CÉLINE

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Ele nasceu no mesmo dia (27 de maio de 1894) em que veio ao mundo Dashiell Hammett e morreu um dia antes (1º de julho de 1961) de Ernest Hemingway estilhaçar seus próprios miolos. Entre essas duas datas, Louis Destouches (ou Louis-Ferdinand Céline, como ficou conhecido por seus escritos) fez muito mais estragos que Hammett e Hemingway. Na literatura e na vida.
Comparado ao ogro de Paris, reacionário, ferrenho anti-semita e inimigo frenético do "mundo moderno", o subversivo Hammett foi um anjo. Se bem que Maurice Nadeau tenha notado uma influência do pessimismo celineano na ficção noir, duvido que Hammett se considerasse um discípulo, mesmo distante, do autor de "Voyage au Bout de la Nuit" (Viagem ao Fim da Noite). Quanto ao proverbial coloquialismo de Hemingway, ele só se compara ao de Céline pela rama. Foi de outra ordem a reviravolta que o escritor francês causou na prosa arrumada e bem-comportada do seu tempo.
Como aconteceu com mister Hyde, havia um médico de boa índole coabitando a torturada alma de Céline –ou melhor, do doutor Destouches. Sua clientela era quase que exclusivamente composta de enfermos sem eira nem beira, aos quais dedicava uma atenção de que só os santos parecem capazes. Sempre quis ser médico ("para servir ao próximo e salvar vidas humanas") e só deixou o estetoscópio de lado porque precisava de dinheiro para sobreviver.
Bons tempos aqueles em que escrever livro era uma ocupação mais rentável que cuidar da saúde dos pobres. Livro sério, bem entendido, não de auto-ajuda. Ficção sem concessões no estilo e na sintaxe. E muito menos na trama –se é que se pode chamar de trama a viagem que Bardamu, alter-ego do autor, faz ao fim da noite.
Publicado em 1932, "Voyage au Bout de la Nuit" é um jorro verbal de 600 e poucas páginas, que rompe com vários tabus da linguagem literária vigente na época, embora sem o radicalismo de James Joyce. Seu parâmetro mais nítido é Rabelais. Muitos se escandalizaram com seu jeito desabrido, visceral, violento mesmo, de amontoar vitupérios e conferir dignidade literária ao linguajar cotidiano, à fala do homem da rua, sem desprezar suas hesitações e seus solecismos.
"Isto não é um romance, mas um grito, um longo grito de não", queixou-se um crítico, sem se dar conta de que, por vias transversas, fizera ao livro o maior dos elogios.
Contra o que gritava Bardamu? Contra o mundo em que Destouches vivia. Um mundo condenado a ser apenas um "estábulo universal". Para Céline, a verdade do mundo é a morte e a do homem, a sobrevivência a qualquer custo. Para livrar nossa pele, todos os meios são válidos, inclusive os mais condenáveis do ponto de vista moral, como a mentira, a traição e a covardia. Bardamu não se acreditava um cínico, mas um torpe realista. "Precisamos aceitar o que realmente somos: perversos, hipócritas, egoístas, mentirosos e, sobretudo, covardes".
Trotski foi um dos primeiros a exaltá-lo como leitura indispensável. Sua fila de admiradores aumentou com o passar do tempo. A de influenciados por sua maneira de sentir e escrever é bem menor, mas nada desprezível. Céline praticamente inventou a literatura existencialista. Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Raymond Queneau saíram de suas costelas. E o mesmo se diga de Henry Miller, Samuel Beckett e William Burroughs. Ao comentar uma biografia de Céline, escrita por Patrick McCarthy há quase 20 anos, John Updike estendeu a sombra de "Voyage" até o Joseph Heller de "Ardil 22" e o Ken Kesey de "Um Estranho no Ninho".
Não é leitura das mais recomendáveis para os dias atuais. Desencanto e ceticismo são "commodities" espirituais que no momento não fazem a menor falta no mercado.
Em 1936, Céline publicou mais um romance significativo, "Morte a Crédito" (editado no Brasil pela Nova Fronteira, bem como "Norte"), outro sonho noir e viscoso. Como o anterior e os seguintes –escritos depois da guerra e de menor envergadura–, também exorcizava as traumáticas experiências do jovem Destouches durante o primeiro conflito mundial, quando quase morreu mutilado por balas alemãs. Voltou da frente ocidental parcialmente surdo, frequentemente zonzo e com uma dor de cabeca que também o acompanhou para o resto da vida.
Seria muito fácil atribuir os desvios do escritor exclusivamente a perturbações de ordem mental. Seu anti-semitismo tinha raízes em outros traumas pessoais. Céline nutria profundo rancor pelos seus colegas de medicina em Paris, a maioria de origem judaica. Pacifista fanático e delirante, cismou que a França melhor faria se se submetesse ao maior poderio da Alemanha.
Muito antes de o 3º Reich atender aos seus anseios, as idéias de Hitler já lhe provocavam delírios escabrosos, expressos em textos como "Bagatelles pour un Massacre" (Bagatelas por um Massacre, 1937), "L'École des Cadavres" (Escola de Cadáveres, 1938) e "Les Beaux Draps" (Os Maus Lençóis, 1941), três panfletos anti-semitas de dar engulhos.
Curiosamente, jamais deixou seu paranóico ódio aos judeus contaminar seus romances. Inclusive por esta razão, eles sobreviveram ao patrulhamento ideológico e até foram editados em Israel.
Por suas posições, Céline teve de se exilar na Dinamarca, em março de 1945, onde foi preso, nove meses depois, e viu o sol nascer quadrado até junho de 1947 ("dois anos de reclusão, numa fossa de 3 x 3m, sem iluminação"). Reincidente, em janeiro de 1950 foi condenado a mais um ano de prisão e a uma pena pecuniária de 50 mil francos. Anistiado em abril de 1951, voltou à literatura e à medicina em Meudon, nos arredores de Paris, onde morreria, de derrame cerebral, poucos horas depois de concluir a primeira versão de "Rigodon". Já não lhe fazia companhia o inseparável e longevo gato Bébert, que, de tão famoso, fez jus, tempos atrás, a um perfil biográfico, editado pela Grasset.
Pouco antes de morrer, Céline perguntou a sua mulher: "Por que escrevo?" E, no mesmo fôlego, respondeu: "Para tornar os outros escritores ilegíveis."
E também para excitar a imaginação de biógrafos e ensaístas. Só entre os franceses, ganhou dois empenhados biógrafos: François Gibault e Frédéric Vitoux. Semanas atrás, Philippe Alméras lançou mais uma biografia: "Céline – Entre Haines et Passions" (Céline – Entre Ódios e Paixões), pela editora Robert Laffont. Recentemente, Alphonse Juilland, que apesar do nome é americano, publicou em livro as memórias de Elizabeth Craig, a dançarina com quem o escritor viveu entre 1926 e 1933.

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