São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Crimes de "lesa-tradução"

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O número crescente de filmes e de livros que romanceiam (e criticam) a vida dos advogados nos Estados Unidos propôs um problema para os tradutores brasileiros.
Obras como "A Firma", "O Dossiê Pelicano", filmes como "Filadélfia" e "Ônus da Prova" referem situações da vida jurídica norte-americana, a cujo respeito a desinformação dos tradutores provoca erros que distorcem a realidade, numa espécie de samba da tradução doida.
Não se repetiu a completa loucura de traduzir "The physician" ("O médico") de Noah Gordon por "O físico" (que, em inglês, é "the physicist"), mas se passou perto com o livro "A Firma", de John Grisham, que melhor andaria, no Brasil, se chamado "A Sociedade de Advogados", nome usado na lei, nos regulamentos e pelos profissionais.
"A Firma" ainda é melhor do que a imperdoável ofensa à inteligência do leitor em "Presumed Innocent", do excelente Scott Turow, adaptado para "Acima de Qualquer Suspeita", no filme com Harrison Ford e Greta Scacchi.
Antes de ir à frente é necessário fazer justiça aos nossos tradutores de "best sellers". Trabalham, geralmente, em regime de urgência. É raro que sejam bem remunerados.
Sei disso porque me formei em direito ganhando a vida –entre mil outras atividades– fazendo traduções. O critério da produção em massa impede maior pesquisa, o que se agrava substancialmente quando o tradutor enfrenta palavras estranhas à sua atividade normal. É o que tem acontecido com termos jurídicos, em livros escritos por advogados militantes no original inglês. Termos que despertam confusão pela pluralidade de significados, que o tradutor profissional precisaria conhecer.
Em "A Firma", o herói Mitchell McDeere se forma em Harvard e vai trabalhar em Memphis, numa sociedade de advogados ligada à Máfia.
É contratado antes mesmo de prestar o que a tradução chama de "exame de doutorado" confundindo o Exame de Ordem ("the bar exam") com o curso de doutoramento, que tem nível universitário de pós-graduação, geralmente depois do mestrado. Mestrado? A tradução também mistura as coisas. Num certo momento alguém diz ao personagem central: "if you want to pursue a master's in taxation" (ou seja, "se você quiser fazer o mestrado em direito fiscal...") o texto brasileiro sai com este disparate: "se você quiser fazer doutorado em tributação legal..."
O nome da editora propõe um paradoxo. É a "Rocco". Em homenagem ao grande jurista e estadista italiano Alfredo Rocco (1875-1935), deveria ser mais cuidadosa, em vez de "to cheat" (enganar, iludir) os leitores. Não se assuste com o termo inglês: "A Firma" transforma "to cheat" (colar na prova, consultando livros, lendo o exame de um colega ou recebendo informação sem que o professor perceba) em "colar grau", ou seja, completar o curso e se formar.
Num certo momento de "A Firma", Mitchell ouve de um sócio do escritório explicações sobre o atendimento de determinado cliente. Diz que fazem muito para o cliente, "everything but litigation". Na versão brasileira esta frase, que se traduziria como "fazemos de tudo, menos a defesa dele em juízo", saiu assim: "fazemos ... tudo, menos litígios" (Ver, em separado, um glossário de termos que podem provocar mais confusão).
Em "O Dossiê Pelicano", outro sucesso de John Grisham, as coisas se complicam porque o enredo se desenvolve a contar de dois homicídios em que as vítimas são ministros da Suprema Corte.
Escrevi "ministros" e não juízes, como fez a tradução brasileira, porque o magistrado que atua na Suprema Corte dos Estados Unidos é "justice" e não "judge". No Brasil o termo equivalente, para o juiz do Supremo Tribunal Federal é "ministro", cujo uso seria, assim, recomendável.
Nesse livro, porém, há mais do que adaptações infelizes. Há, por exemplo, o erro de chamar "study carrel" de "saleta particular de estudo", quando, em verdade, é a pequena área ou o espaço destinado ao conforto dos consulentes dos livros de uma biblioteca.
Os italianos são injustos ao dizerem que o tradutor é um traidor. Há traduções que são verdadeiras obras-primas, pois transpõem para o novo idioma valores literários insuspeitados no texto original.
Todavia, há limites técnicos que exigem um mínimo de conhecimento e de fidelidade do tradutor. Na complicada linguagem dos juristas a fidelidade é necessária para que a tradução seja, pelo menos, inteligível.

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