São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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NOITE TOTEM

Oliverio Girondo e a poesia da destruição

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

As três peças produzidas e ora apresentadas integram o livro "En la Másmedula" (1954), de Oliverio Girondo. O livro é composto de 36 textos que, na verdade, constituem um só poema, como "Altazor", de Vicente Huidobro ou "Trilce", de Cesar Vallejo.
Os versos finais do fragmento "Noite Totem" ("...que pode ser a morte com seu demente celibato/muleta/e é a noite") inspiraram a reunião das três peças, que tematizam a noite como prefiguração da morte.
O tema é representativo do livro que, segundo o crítico Gaspar Pio del Corro, opera por flutuações entre o significativo e o impreciso entre o conformante e o caótico, entre o limite semântico e o limite formal, que, ao cabo, coincidem com a atitude limítrofe do artista e do homem. Noite. Morte.
Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges são os dois maiores poetas argentinos deste século. Representam – sobretudo a partir dos anos 30 – vertentes distintas e antagônicas no plano formal. O primeiro voltado para experimentações na linguagem sem nunca perder de vista horizontes semânticos, metafísicos ou existenciais.
O segundo – um escritor em companhia no século 20 latino-americano – voltado para a elaboração de uma poesia neoclássica, moderna, porém, sem sentido de experimentação ou vanguarda.
Um traço comum das duas poesias/poéticas é a enumeração caótica, que a elas empresta o "rasgo da modernidade". Se, em Borges, a enumeração caótica é controlada pela reflexão intensa e pelo uso de formas gramaticais, em Girondo aparece contraposta ao barroco, figurado em extensas complementações hipertróficas, que dilatam e até mesmo estruturam seus poemas.
O poeta e ensaísta argentino Saul Yurkievitch arrola tanto Girondo quanto Borges entre os fundadores da nova poesia latino-americana ao lado de Cesar Vallejo, Vicente Huidobro, Pablo Neruda e Octavio Paz (Bairral Editores, 1973).
A Girondo dedica um ensaio dos mais elucidativos. Yurkievitch considera "Veinte Poemas" (1922) e "Calcomanias" (1925) "libros de aprendizaje", tributários da estética ultraísta, onde é celebrada, por meio de gemas metafóricas e furor neologista, a urbe moderna.
Talvez a este Girondo, anterior a "Persuasión de los Dias" e "En la Masmédula", tenha se referido Oswald de Andrade em sua crônica "Sol da Meia-Noite", de 1943, onde o brasileiro nomeou o argentino como "mosqueteiro de 22".
Embora já bom poeta, não é este o Girondo dos limites da vida/linguagem. Observa Yurkievitch que, a partir de "Espanta-pájaros" (1932), se produz em Girondo uma mutação cada vez mais radical: sua poesia perde o tom otimista, evasivo, a euforia solidária em troca da regressão ao amorfo, ao larval, em decomposição, em alucinada desintegração.
É Girondo experimentando o "avanço de sua própria inexistência", entrando, cada vez mais nos recintos da morte e se confrontando com o "nada opressivo", com o absurdo e a arbitrariedade do universo. É Girondo se confrontando, por outro lado, com a existência fantasmática da poesia ("...buscar o poema/(...)/entre epistílios da aurora ou ressacas insones de/solidão crescente/antes que se dilate a pupila do zero...".
Yurkievich anota que "o problema expressivo de Girondo (sobretudo em "En la Más Médula") é extremamente contemporâneo: "reglar el desarreglo sin arregar-lo".
Em outras palavras, representar a destruição por meio de construções verbais eficazes que não criem entre meio e mensagem uma heterogeneidade disparatada e debilitadora, comunicar o caos sem harmonizar, sem arranjar excessivamente os signos e sem extremar o grau de entropia para que não se perca a imagem estética.
A cidade, celebrada nos primeiros livros, é agora rechaçada como "vida artificial", debilitadora e causadora de alienação. A poesia, que se aprisiona unicamente em estatudos literários, desprezada. A negação das instâncias livrescas vem acompanhada do impulso de instaurar o "vital intuitivo".
O crítico Gaspar Pio del Corro sintetiza esta situação: "Girondo denuncia o extravio do signo histórico (no caso, o extravio das renovações da modernidade). A partir deste signo, deambula até o momento em que chega ("En la Masmédula") à filiação do signo telúrico; aí começa para ele um progressivo resgate da graça significante".
Yurkievitch explica esta tensão do seguinte modo: "Há em Girondo um eixo de exaltação vital que opera uma reintegração fraterna ao cosmos, um regresso às origens não somente no sentido habitual de reafirmação do autóctone, de repulsa à civilização tecnológica, de repúdio à acumulação cultural. Mas do restabelecimento do vínculo com a terra, com o cordão umbilical, para alcançar o larval e o protoplasmático".
Noite. Morte. Os três fragmentos ora apresentados são "Noite Totem", Alta Noite" e "Rada anímica". Sobre os dois primeiros escreve Saul Yurkievitch: "Em "Noite Totem" e "Alta Noite" a quietude corporal provoca a máxima mobilidade imaginativa.
No sono rápido, no subsonho que é preâmbulo do vazio, "prefiguração da ausência", o discurso se transforma em decurso de associações erráticas, ilação liberada a obssessivas mitoformas, "a presenças semimorfas, a uma grisluz que avassala, desertando. O nada, ameaçador, tenso, agita a mente assaltada por visões nebulosas, de intuições larvadas (...). Até que o nada se converte em vértigo".
A inegável vocação barroca dos três fragmentos, a complementação hipertrófica, que se revela nas sucessivas pseudodefinições de noite/morte em "Noite Totem" e "Alta Noite" e no ritmo repetivivo e encantatório de "Rada anímica", são assim explicados por Yurkievitch: "Paradoxalmente Girondo apela à mais ampla dizibilidade para dizer o nada."
Em "Noite Totem", a noite/morte é estruturada com o tato. As muitas definições e as mãos "escarvando o incerto". É "'médium", mediação, meio, intuição, que esbarra no paradoxo: "grisluzes outras pálpebras videntes" - que vêem e não vêem a noite, e (então) deserta.
Em "Alta Noite", há gongóricas conceituações da noite ("com seu animal dolente cabeleira de libido/seu satélite angorá) mas que, sem solução, reflui para ocas artérias, para o griscinza, para o silêncio.
"Rada anímica" é o terceiro dos fragmentos aqui publicados. Rada quer dizer baía, enseada. Preferi, no entanto, manter a palavra rada no título, sugerindo a idéia de radar, de antena, de captação. O popular refrão de magia negra "abracadabra" é invocado para "neutralizar" a morte e seus compassos.
A extinção, a perspectiva de inexistência (da condição humana, da poesia), são transformadas por Girondo em energia revitalizadora. Os poemas de "En la Masmédula" podem, por sua riqueza e singularidade, estimular a poesia brasileira contemporânea a se recolar num horizonte de invenção -formal, semântico, existencial.

Nota: As três peças aqui publicadas integram o livro "Antes que se Dilate a Pupila do Zero", que reúne todos os fragmentos de "En la Masmédula" e outros poemas de Oliverio Girondo, com organização e tradução de Régis Bonvicino, a sair pela Iluminuras

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