São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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O músico dos corpos em movimento

<FT:"MS SANS SERIF",SN>ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"De maneira geral, minha música busca a sensação de movimento – do movimento que temos ao dirigir um automóvel, ou voar de avião, e não de um galope a cavalo, ou marcha militar, como se escuta na música passada." Resumindo tão prosaicamente uma música tão rica, assim se expressou Elliot Carter numa entrevista em Chicago, há três semanas, durante os ensaios para a estréia de uma nova peça orquestral.
Aos 84 anos, Elliot Carter é o mais importante compositor em atividade nos Estados Unidos. Seu lugar na música moderna está acima de qualquer contestação: o ex-discípulo de Charles Ives hoje mais parece seu pai, o "homem central" profetizado por Emerson, que surge para criar uma música inteiramente nova e genuinamente americana.
Em seus recém-publicados diários dos anos 60 ("The Sixties"), Edmund Wilson comenta que Carter, de sua parte, não gostava muito de se ver descrito como um compositor americano. Em 1965, quando foi publicado o grande estudo de Wilfrid Mellers sobre a música dos Estados Unidos ("Music in a New-Found Land"), Carter confidenciou a Wilson que lhe desagradava o caráter "d-h-lawrenciano" do livro.
Mas ele já era (e continua sendo) a suprema expressão de um caráter do seu país: não tanto por incorporar elementos da cultura estereotipada, mas porque ser musicalmente americano, depois de Carter, é reagir, de alguma forma, às suas obras. Carter é o Wallace Stevens da música e é uma nova arte americana que vai começar com ele.
O movimento é a ficção dessa nova música abrasiva. Já em seu livro de ensaios, "The Writings of Elliot Carter" (Schirmer, 1977), ele descrevia sua impaciência com aquelas formas de composição onde "primeiro se faz um pouco disto e depois aquilo". Carter mistura o isto e o aquilo, alimentando o choque de elementos opostos.
A "Sinfonia para Três Orquestras" (1976), inspirada por versos de Hart Crane e St. John Perse, eleva este princípio ao mais alto nível de complexidade, a partir das bem-sucedidas audácias do "Concerto Duplo" (1961) e do "Concerto para Orquestra" (1969). Aqui, como sempre, as imbricações da forma são mais uma questão de tempo do que de texturas: a forma vem do movimento e o movimento é resultado da progressiva alteração de cada linha e da superposição dessas linhas, cada uma a seu tempo.
Para o compositor, ainda mais do que para o poeta, técnica e invenção se combinam, numa só visão. No caso de Carter, a maturidade coincidiria com a descoberta do que ele chamou de "modulação métrica": um artifício através do qual vai-se alterando, gradualmente, o pulso da música. É algo assim como acelerar o carro e mudar de marcha; o segredo está na mudança gradual, e não simplesmente por múltiplos de um número inteiro. Desde 1951, data do primeiro "quarteto de cordas", esta tem sido uma das marcas registradas da sua obra.
No terceiro "Quarteto", de 1971 as modulações métricas são de tal ordem que os músicos, enquanto tocam, escutam, num fone de ouvido, uma trilha gravada com as variações do metrônomo.
Mas engana-se quem parte disso para acusar, de antemão, o compositor: poucas obras modernas são tão diretas e, afinal, tão simples quanto as de Carter. A complexidade, aqui, está sempre aliada ao mais claro sentido dos gestos e a uma expressão intensamente pessoal. Carter é um "poeta duro", como diria Whitman. Não tem medo das violências, mas também não nutre paixão especial por elas.
"O mundo é uma neblina. Depois o mundo é minucioso e vasto e transparente." Extraídas de um poema de Elizabeth Bishop, musicado por Carter (no ciclo "A Mirror on Which to Dwell", de 1975), estas palavras descrevem bem outras obras, como o "Concerto para Oboé" (1987), ou "Syringa" (1978), sobre versos de John Ashbery, ou as já clássicas "Night Fantasies" (1980), para piano. (Todas elas disponíveis em CD.)
"Partita", que teve sua estréia há três semanas, é uma música de grandes dimensões e grandes ambições. O nebuloso mundo, no caso, é interrompido pelas esfuziantes "partidas" entre grupos rivais na orquestra.
Primeira de um grupo de três obras "in progress" para grande orquestra, a "Partita" é mais uma evidência da impressionante energia do compositor, cujas forças parecem se multiplicar a cada ano que passa. Carter parecia ter entrado em sua fase mais forte depois dos 60 anos, apenas para se renovar aos 70 e agora aos 80. Como o poeta Stevens, ele descobre, em "auroras do outono", a mais eloquente e mais natural mocidade.

ARTHUR NESTROVSKI é doutor em música e professor na pós-graduação em comunicação da PUC/SP.

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