São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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O perigo da eutanásia

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Na medicina, o transplante é um procedimento extremo. Ele só é feito quando um órgão pára de funcionar ou funciona de maneira tão precária que compromete a vida do paciente.
O maior perigo do transplante é a rejeição. Esta ocorre quando o receptor é incapaz de incorporar o órgão estranho. Nesse caso, o paciente acaba ficando sem o órgão antigo (e doente) e sem o órgão novo (e sadio). É, sem dúvida, o pior dos mundos.
As cirurgias de transplante encerram muita complexidade. Mas elas são relativamente simples, quando comparadas ao transplante de instituições de uma sociedade para outra. Vejam o caso da ex-União Soviética. As novas repúblicas estão procurando transplantar para o seu interior um conjunto de mecanismos das economias de mercado para substituir a doentia parafernália do planejamento centralizado.
Trata-se não apenas do transplante de uma instituição, mas de um grande conjunto de instituições que inclui um novo sistema legal, um novo tipo de propriedade, uma nova moeda, um novo sistema tributário, um novo sistema bancário e uma nova forma de governo.
É como se um médico ousasse realizar um transplante simultâneo de coração, fígado, rins, pâncreas e pulmões. É assustador, não é? Mas esse é o desafio de Ieltsin e seus companheiros. É evidente que o risco de rejeição é enorme. Já há vários sinais disso. Muitas pessoas começam a condenar abertamente as incertezas da economia de mercado e a sentir saudades do antigo regime.
O Brasil também é um país doente. Mas, por ora, estamos bem longe de um múltiplo transplante. Mal ou bem, temos uma economia de mercado baseada na livre iniciativa e na propriedade privada. Possuímos um sistema financeiro que, apesar de inchado, está bem organizado e contamos com uma estrutura tributária que, apesar de gulosa, consegue arrecadar uma boa parte das receitas do Estado. E a nova moeda está prestes a nascer.
Ou seja, a doença do Brasil não requer um transplante, mas sim um tratamento medicamentoso adequado –capaz de recuperar a função dos órgãos existentes que, apesar de avariados, ainda têm chance de funcionar por várias décadas.
Grave será o quadro se algum plantonista inexperiente cismar de fazer um transplante às avessas, destruindo as instituições existentes e tentando trazer para cá órgãos moribundos e que já sucumbiram em outras partes. A rejeição será fatal. Viveremos a angústia de um doente condenado e que se ressente da falta dos seus antigos órgãos sem poder incorporar os novos.
Uma ousadia desse tipo implicaria jogar o Brasil na situação da finada União Soviética. Essa é a escolha dramática que teremos de fazer este ano: optar entre os que acreditam no tratamento medicamentoso como meio de garantir a sobrevida do paciente e os que estão obcecados pela necessidade de trocar todas as instituições em direção a um sistema que já morreu. Uma ação tão deliberada como essa significaria a eutanásia da nação.

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