São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
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Doutrina filosófica sucumbiu ao folclore

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

No filme "O Viajante", de Volker Schloendorff, ora em cartaz no Rio, Sam Shepard conhece uma garota alemã vidrada em Camus. A ação se passa no final dos anos 50 e Shepard é um engenheiro totalmente alheio aos fatos e artefatos culturais do seu tempo. Ao descobrir que ele não tem a mais remota idéia de quem seja Camus, ela pergunta: "E Sartre, você conhece?" Este ele conhece. Mas só de nome e por sua reputação como supremo guia dos existencialistas –"aquelas pessoas que se vestem de preto e tomam café expresso", comenta Shepard.
Um existencialista por certo não diria que o personagem de Shepard fez uma redução eidética de sua espécie. Mas o fato é que fazia parte da essência dos existencialistas vestir roupas escuras, em geral pretas, e tomar café, pouco importa se expresso, pression ou filtré. Não me refiro aos seus espécimes mais genuínos e consequentes, digamos assim –aqueles que liam até o fim "O Ser e o Nada", o sartriano corão existencialista, e também se identificavam com as idéias básicas de Husserl e Heidegger–, e sim aos seus avatares caricaturais, muitíssimo mais numerosos.
Eram esses que a mídia, incorrigivelmente frívola, mais enfocava, colaborando ainda mais para a sua proliferação.
Além da blusa preta com gola rulê, uma barbicha caía bem, sendo quase obrigatório o hábito de fumar. De preferência, desbragadamente, até amarelar as unhas. Tanto melhor que amarelassem com a nicotina e o alcatrão de "Gauloises" ou "Gitanes". Uma xícara de café, uma dose de Pernod e um olhar entre o blasé e o melancólico –voilá o protótipo existencialista que, com a inestimável colaboração do cinema americano, acabou ficando.
(A geração dark não inventou nada de novo. Apenas reciclou um modismo de quatro, cinco décadas atrás. Com uma desvantagem: não leram sequer E.M. Cioran, o mais conceituado cético do nosso tempo. E olha que seus textos, ao contrário dos de Sartre & companhia, são curtos e de fácil deglutição).
O habitat primevo dos existencialistas eram as esfumaçadas caves parisienses de Saint-Germain de Près, onde o cool jazz e o bebop só admitiam o boogie-woogie na hora de dançar. Outra exceção: a canção fossenta mitificada por Juliette Gréco, a musa de Sartre (Se você leu Maysa, tudo bem).
Uma delas começava assim: "Eu vivo em melancolia". E prosseguia com estes versos: "Eu me levanto todas as manhãs, e digo: `Bom-dia, tristeza' ".
Quem inicia o dia com tal disposição de espírito tem mesmo que andar de luto.
Que outro tipo de disposição se podia ter depois da guerra e, no caso da França, após cinco anos de ocupação? O curioso é que, antes de florescer na margem esquerda do Sena, a filosofia existencialista, originária da Dinamarca (Kierkegaard), fora decantada na Alemanha. Gnose do invasor, com ela os franceses criaram um dos mais badalados fenômenos sociológicos do século. Jamais uma doutrina filosófica desfrutou de audiência tão colossal e tão fundo marcou o comportamento das pessoas.
Claro que as idéias existencialistas disseminadas pelo vulgo também eram, como o folclórico intelectual de barbicha e gola rulê, uma caricatura. Sartre deixou bem claro que "ser livre é correr o perpétuo risco de ver suas ações fracassarem e a morte destruir o projeto". Para o existencialista prêt-à-porter, a liberdade se confundia com o laxismo, a irresponsabilidade, a esculhambação. Um hedonismo reajustado ao porre libertário de 1945.
Seria exigir demais que entre nós a vulgarização do existencialismo não chegasse às raias do ridículo. Chiquita Bacana? Foi o de menos. Piores eram aqueles que de fato acreditavam que o existencialismo se resumia a uma obediência cega aos caprichos do coração e aos impulsos da libido. E cismavam em andar de preto numa terra quente e ensolarada, onde o certo é usar roupas claras e leves. Ou, então, nem isso. Como a sábia Chiquita Bacana, a existencialista da Martinica, que só se vestia com uma casca de banana-nanica.

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