São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
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Kathleen Battle eleva coquetismo à condição de arte dramática

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Esta vai enriquecer o já volumoso "Almanaque das Gafes do Teatro Municipal" edição 1995.
Foi anteontem, antes do intervalo, no meio da primeira parte do recital de estréia da soprano norte-americana Kathleen Battle.
Ela estava no auge de um ciclo de nove "lieder" de Schubert. Terminou de cantar "Gretchen am Spinnrade" e se retirou para poder retornar em seguida sob aplausos, como fazem divas que se prezam.
Ao voltar, porém, ela se deparou com um cenário de comédia. Um terço das cadeiras estava vazio e parte dos espectadores lhe dava as costas, correndo para a saída.
O êxodo não se devia a um fiasco da cantora, que estava se saindo muito bem, e sim a mais um engano da platéia (ou patuléia, como dizia o filósofo). Esta julgou que era a hora do intervalo.
Correu para a porta assim como não soube quando aplaudir porque sequer se deu o desafio de ler programa impresso.
Kathleen olhava atônita para a audiência barulhenta. Esperava silêncio e respeito. Os retirantes se deram conta do vexame e, embaraçados, voltaram um a um a seus lugares, não sem produzir ruído.
A cantora fechou os olhos, se concentrou e fingiu que nada havia acontecido. Atacou com graça "Die Maenner sind Méchant".
Ao longo do recital, o público interrompeu duas músicas com palmas. Fez a soprano se calar antes de terminar os versos. Ela trocava olhares de perdão com o mediano pianista Martin Katz.
Pelo menos os celulares se comportaram como "gentlemen". Deveria haver também uma lei que obrigasse o público a ser desligado antes do início dos espetáculos.
A cantora contornou todas as situações com bom desempenho. Tem uma voz fraca e de pequeno alcance, mas sabe colocá-la e jogá-la para longe. Sua dicção clara ajuda no entendimento das letras, até mesmo as em português, como "Modinhas e Canções", de Villa-Lobos, que ela ousou cantar.
Desfez com sorrisos a reputação de difícil e furibunda. Kathleen é uma coquete. Eleva o coquetismo ao status de obra de arte dramática. Carrega na interpretação de canções talhadas para o lirismo abstrato. Eis sua originalidade.
Vestida com um longo encarnado, fez de cada "lied" uma micro-ópera com ápices e finais. Enchia os versos com trejeitos de rosto e mãos, como se estivesse em ópera.
Iniciou com duas árias de Purcell. Mostrou precisão na respriação e nos ataques. Nos "Três Lieder de Ofélia, Op. 67", de Richard Strauss, gastou afinação e teatralidade. Com "Dieu quel frisson...", de Gounod, condensou 50 minutos de ópera séria em cinco. Nasceu, sofreu e morreu em instantes. Fez a platéia gritar.
Deu três bises, o último o clássico brasileiro "Azulão". Foi um recital para constar entre as ocasiões célebres do teatro. Deverá se repetir hoje (ingressos esgotados). Battle provou ser forte. Resistiu a um dos públicos mais indomáveis do orbe terráqueo.

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