São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 1994
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"O Viajante" atualiza o mito do incesto

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Todo o problema do suíço Max Frisch (1911-91) ao escrever "Homo Faber" nos anos 50 e denominá-lo "um relato" consistia em trazer o mito para a atualidade, conseguir criar uma mitologia através do realismo existencialista da época.
Embora pareça simples, a adaptação de um livro como esse para o cinema complica ainda mais o problema de criação de uma mitologia hoje.
O próprio Frisch acompanhou a confecção do roteiro e deu seu aval, logo antes de morrer, ao projeto de Volker Schlondorff –o filme, de 1992, acabou com o título "O Viajante" ("Voyager").
Frisch tentou fazer a experiência do mito se manifestar através de um realismo esquemático (o termo aqui não é pejorativo), onde a narrativa direta, o simples relato, é submetido a um esquema mitológico (no caso, o incesto).
Tudo parece ser de um realismo absoluto, mas sob a narrativa seca e discreta está uma rede de coincidências extraordinárias, que guiam e dão o sentido da trama.
Frisch conseguiu, em seu texto, uma perfeita combinação entre esses opostos (o realismo seco com um fundo mitológico, inverossímil dentro da perspectiva realista) para alcançar a representação do sentido trágico hoje.
As imagens cinematográficas, com seu caráter mais realista e imediato, tendem a desequilibrar essa combinação, realçando a inverossimilhança do esquema –das coincidências da trama etc.
Mesmo assim, diante dessa dificuldade específica do cinema, Schlondorff conseguiu chegar perto do projeto de Frisch. "O Viajante" é um belo filme, que tenta manter, dentro do possível, o esquema mitológico e inverossímil da intriga encoberto sob a aparência realista das imagens.
Schlondorff ("O Tambor") optou pelo "flashback". Ao contrário do livro, no filme tudo começa em uma sala de espera do aeroporto de Atenas, em 1957, com Faber (Sam Shepard) lembrando-se dos últimos meses, da tragédia desencadeada por uma série de coincidências desde seu encontro com um alemão num vôo entre Caracas e o México.
Quando o avião cai no deserto mexicano, Faber descobre que seu companheiro de vôo é irmão de um homem (Joachim) de quem foi amigo quando estudava em Zurique, antes da guerra.
"O que me apavora é uma série de coincidências que me persegue", dirá Faber ao alemão diante da carcaça do avião caído no deserto, como se estivesse prevendo, naquele encontro, o futuro de sua própria história.
A partir do encontro, todo o passado de Faber vem à tona, ao mesmo tempo em que vai se formando em sua cabeça, progressivamente, uma consciência aterradora desse passado.
Faber vai descobrir, por exemplo, que Hannah, sua namorada de juventude em Zurique, havia se casado com Joachim e tido uma filha em 39, e passa a suspeitar que a filha é sua.
A rede de coincidências vai continuar a persegui-lo, obrigando-o a viver numa oscilação permanente e progressiva entre inconsciência e revelação, a ponto de não saber mais, a certa altura, se a mulher por quem está apaixonado é ou não sua própria filha.

Vídeo: O Viajante
Diretor: Volker Schlõndorff
Elenco; Sam Shepard, Barbara Sukowa e Julie Delpy
Distribuidora: Paris Vídeo Filmes (tel. 011/864-3155)

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