São Paulo, sexta-feira, 27 de maio de 1994
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"Ham-Let" encerra temporada de sucesso

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A peça "Ham-let", dirigida por José Celso Martinez Corrêa e encenada pela companhia de teatro comum Uzina Uzona, faz suas três últimas apresentações neste fim-de-semana.
A não ser pela expectativa em torno da reaparição do Oficina e da curiosidade sobre a encenação da peça de William Shakespeare, o início da temporada, em 1º de outubro do ano passado, foi cercado por ceticismo. O sucesso que se seguiu a algumas semanas de casas vazias, foi, assim, surpreendente.
Zé Celso, 57, diz que o atropelo inicial era inevitável. " `Ham-let' foi a peça que escolhemos com um objetivo: abrir o teatro Oficina. E isso foi feito quase que na marra."
"Com um texto considerado longo (quatro horas e meia, dois intervalos), sem publicidade, com luz e som inicialmente precários, teatro inacabado, a respeito do qual pesava uma maldição da suposta falta de conforto dos bancos da Lina Bardi, que eu acho maravilhosos, cúmplices de uma posição ativa do corpo enquanto ocorre o espetáculo; com tudo isso, foi um grande sucesso, nós não só abrimos o teatro como consolidamos uma companhia voltada para esse tipo de trabalho", diz o diretor.
O sucesso não trouxe estabilidade financeira para a companhia. Segundo o diretor, além do dinheiro da bilheteria, o grupo precisa de apoio do Estado, do município e de empresas privadas: "Num certo sentido, nós somos herdeiros de um movimento ligado à tradição do teatro, um movimento em que você trabalhe a ambiguidade permanente da relação entre a vida e os mitos, este movimento passou por um colapso e um coma e que agora é um movimento praticamente sem cidadania".
Corrêa diz que a conjugação do autoritarismo político radicalizado pelo Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, com a ascensão da televisão foi fatal para deslocar do centro da atividade dramática o teatro de repertório que florescera no Brasil nas décadas anteriores.
Nos anos 60, o trabalho do grupo Oficina causava furor por suas interpretações revolucionárias, impregnadas dos elementos rituais e orgiásticos que caracterizam a atuação do grupo hoje e que alteravam de maneira radical a relação estabelecida entre palco e platéia.
Depois de conseguir tombar o Oficina, na rua Jaceguai, e de ter obtido recursos do governo do Estado para construir o teatro (o que demorou ao todo 13 anos), Zé Celso agora resolveu aceitar uma idéia do governador Luiz Antonio Fleury Filho para transformar o Oficina numa fundação autônoma.
Pretende reproduzir no teatro, com a participação de Fleury, uma cena da peça "As Bacantes", de Eurípides, em que Cadmos, fundador e governador da cidade grega de Tebas, restabelece o culto a Dionísio.
O caminho particular do Oficina, de cujo núcleo fazem parte os atores Marcelo Drummond (Hamlet), Pascoal da Conceição (Polônio) e Alleyona Cavalli (Ofélia) lembra o caminho do próprio herói trágico da peça de Shakespeare.
Não basta conseguir algo, mas conseguir de um determinado jeito. A maneira de fazer as coisas é fundamental: "Era muito mais fácil ter aberto um teatro sem teto móvel, com palco italiano, com poltrona etc".
Mas fazer um teatro com essas características (a platéia ocupa estruturas laterais; a ação se desenrola num corredor central largo em declive) é operar do mesmo jeito que Hamlet, que recebe do fantasma de seu pai uma missão vingadora, mas vai realizá-la à sua maneira, de forma absolutamente radical e fiel a si mesmo.
Em razão de problemas cardio-pulmonares, que o afetam desde fevereiro, Zé Celso não está mais desempenhando o papel do fantasma. É motivo para que ele exercite a identificação entre atores e personagens: "Agora, com o meu afastamento, acontece com o grupo acontece algo semelhante ao processo de Hamlet em sua última parte; a companhia está se libertando de mim, assim como Hamlet se liberta do fantasma de seu pai. Ele está fazendo à maneira dele, cada vez mais".
A sexualidade da peça fez sucesso, segundo a atriz Alleyona Cavalli, 24: "Não é só a nudez, mas a libido, que geralmente é suprimida nas interpretações de Hamlet. Saem daqui, da platéia, várias Ofélias também. Há um contágio. Os meninos saem também mais hamlets".
Marcelo Drummond, 31, que fez um Hamlet irreverente e escrachado, viu o público chegar em ondas: primeiro foi a maré teen e, mais recentemente, começaram a aparecer os antigos frequentadores do Oficina da década de 60, o que não ocorria no início da temporada: "As pessoas deliram muito, porque a tragédia de Hamlet leva a gente, é uma máquina sobre a qual não há controle. A peça leva as pessoas a se envolverem com esse clima febril".
Pascoal da Conceição, 40, acha que a força da encenação está também em conseguir fazer com que a libido presente nas relações pessoais, políticas, se explicite e transborde para a platéia, jogando com sentimentos de estranheza e fascínio: "É como diz um amigo meu, depois que a porta fecha, seja o que Deus quiser". Numa era regressiva, de isolamento, castração e assexualidade, "Ham-let" optou pela ruptura e triunfou.

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