São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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Banco Central evoca Ulisses e as sereias

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "canto da sereia" é uma imagem conhecida. A origem da expressão remonta às mais luminosas fontes da literatura e mitologia gregas. As versões da fábula e os detalhes da narrativa variam de autor para autor, mas o sentido geral da trama é comum.
As sereias eram criaturas sobre-humanas –ninfas de extraordinária beleza e de um magnetismo sensual. Viviam sozinhas numa ilha do Mediterrâneo, mas tinham o dom sublime de atrair para si os navegantes, graças ao irresistível poder de sedução do seu canto.
Atraídos por aquela melodia divina, os navios costeavam a ilha, batiam nos recifes submersos da beira-mar e naufragavam. As sereias então devoravam impiedosamente os tripulantes.
Doce o caminho, amargo o fim. Como escapar com vida do canto das sereias? Muitos tentaram, mas pouquíssimos conseguiram salvar-se. A literatura grega registra duas estratégias vitoriosas.
Uma delas foi a saída encontrada, no calor da hora, por Orfeu, o incomparável gênio da música e da poesia na mitologia grega. Quando a embarcação na qual ele navegava entrou inadvertidamente no raio de ação das sereias, ele conseguiu impedir que a tripulação perdesse a cabeça tocando uma música ainda mais doce e sublime do que a que vinha da ilha.
Os tripulantes, com apenas uma exceção, ficaram tão atentos ao canto de Orfeu que nem deram ouvidos ao das sereias. O navio atravessou incólume a zona de perigo.
A outra estratégia foi a adotada por Ulisses no poema homérico. Ao contrário de Orfeu, o herói da "Odisséia" não era um ser dotado de talento artístico sobre-humano. Para ele, sair cantando do perigo estava fora de questão.
Sua principal arma para vencer as sereias não foi o golpe de gênio ou a improvisação talentosa. Foi o reconhecimento franco e corajoso da sua própria fraqueza e falibilidade –a aceitação dos seus limites humanos.
Ulisses sabia que, no calor da hora, ele e seus homens não teriam força e firmeza para resistir ao apelo sedutor das sereias. Foi por isso que, ao se aproximarem da ilha, ele ordenou que todos os tripulantes tapassem os próprios ouvidos com cera e mandou que o amarrassem ao mastro do navio.
Avisou ainda que, caso ele exigisse com gestos e gritos que o soltassem dali, o que deveriam fazer era prendê-lo ao mastro com mais cordas e redobrada firmeza.
Dito e feito. Quando chegou a hora, Ulisses foi seduzido pelas sereias e fez de tudo para convencer os demais a deixarem-no livre para ir juntar-se a elas. Seus subordinados, contudo, souberam negar-lhe tais apelos e cumpriram a ordem de não soltá-lo até que estivessem longe da ilha.
Ulisses, é verdade, por pouco não enlouqueceu de desejo. Mas as sereias, desesperadas diante daquela derrota para um simples mortal, afogaram-se de desgosto no mar.
Orfeu escapou das sereias com seu talento, reputação e virtuosismo. Ulisses abriu mão temporariamente de sua liberdade de ação para salvar sua vida e liberdade futuras.
Mortal, porém sagaz, Ulisses soube lidar racionalmente com sua irracionalidade, criando um modo de proteger-se da sua própria fraqueza, miopia e oportunismo com relação a si mesmo.
O Plano Real é o mais recente episódio na "odisséia brasileira" rumo à moeda estável. As estratégias de Orfeu e Ulisses para vencer as sereias ajudam a entender a situação, opções e dilemas do Banco Central (BC) diante do desafio da gestão da nova moeda nacional –o real.
A grande questão é: como garantir que, com a criação do real, o país inaugure um regime monetário civilizado?
Depois de tantos fracassos e falsas promessas, como acreditar que desta vez será diferente, que agora conquistaremos um regime no qual o valor da moeda –o poder de compra do real no nosso bolso– não será aviltado pela emissão aloprada e esquartejado no altar das necessidades de financiamento do setor público?
Aconteça o que acontecer de julho em diante, uma coisa é certa. Uma vez criado o real, o BC vai prometer solenemente a si mesmo, ao resto do governo e à sociedade que não vai sucumbir a nenhum "canto da sereia" e afrouxar na condução da política monetária.
A credibilidade dessa promessa, no entanto, será naturalmente baixa, porque todos sabem que o ajuste fiscal é precário, estamos em ano eleitoral e o próprio governo pode ficar tentado a mudar de idéia no meio do caminho.
Diante disso, o que pode fazer o BC para reforçar a credibilidade da promessa de que com o real será diferente? Existem, em tese, duas estratégias básicas.
A primeira é o BC dar uma de Orfeu. Ele anuncia uma programação monetária sublime para o segundo semestre, afina os instrumentos e se compromete a executar a pauta de forma absolutamente transparente e virtuosa.
Às demandas sedutoras e insidiosas por juros baixos e expansão monetária, o "BC-Orfeu" responde olhando para o outro lado, reafirmando sua virtude e fazendo uma regência impecável da nova programação.
Se o Brasil contasse com instituições monetárias tão sólidas quanto as alemãs e o BC tivesse a reputação do Bundesbank, a estratégia de Orfeu seria uma ótima opção. Como, obviamente, este não é o caso, a desconfiança sobre o real seria alta e contaminaria as expectativas já desde o parto da nova moeda.
A outra estratégia é o BC baixar um pouco a crista, reconhecer que não é nenhum Bundesbank e dar uma de Ulisses. O lastro é o mastro. O "BC-Ulisses" abre mão de sua liberdade para expandir e contrair a oferta de moeda.
Ele submete a gestão do real a uma regra externa e que independe de sua vontade –por exemplo, a de que a criação e destruição de reais estará rigorosamente amarrada à variação das reservas cambiais. O compromisso com a regra substitui o poder discricionário do candidato a herói.
Isso resolve o problema? A estratégia de Ulisses não garante por si só a conquista da estabilidade, mas ela melhora sensivelmente a expectativa de vida ao nascer da nova moeda.
Com as mãos firmemente atadas ao lastro cambial e o seu passado libertino, o "BC-Ulisses" decerto enlouquecerá de desejo. Mas esta é a melhor opção para tentar resistir com sucesso ao canto das sereias.
A clareza e a visibilidade do seu compromisso com a regra escolhida, qualquer que ela seja, pode ser mais importante do que a discussão sobre a sua forma específica.

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