São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 1994
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O bebê feio e o morto covarde

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Há dois tipos de brasileiros irremediavelmente fabulosos: o recém-nascido e o morto. Não há, entre nós, o neném feio. Insisto: está para nascer o bebê desengonçado. Também não conhecemos o defunto mau-caráter. Mesmo o mais malfeitor dos patrícios recebe atestado de bondade ao passar à condição de cadáver.
Proponho ao incrédulos que faça o teste: visite uma maternidade ou compareça a um velório. Crianças horrorosas, com cara de joelho amassado, são saudadas como a quintessência da beleza universal. Antes de descerem ao purgatório, monstros abjetos são celebrados como bons homens, excelentes pais-de-família, companheiros irrepreensíveis.
Fiz o preâmbulo apenas para introduzir uma tese: a cultura do bebê mimoso e do defunto boníssimo contamina toda a escala de valores do cidadão brasileiro. O ataque ao novo virou, entre nós, um ultraje; a crítica ao morto, uma ignomínia, uma infâmia.
Note-se, por exemplo, a trajetória de nossa Constituição. No instante em que foi parido pelo Congresso, em 88, o texto constitucional foi apresentado como um rebento sem defeitos. Poucos, como o ex-presidente José Sarney e o advogado Saulo Ramos, ousaram criticá-lo publicamente. Foram tachados de impatriotas. A esquerda avançou-lhes na jugular.
Digo agora algo que em 88 não se podia declarar nem em terreno baldio: a nova Constituição é horrorosa, diria mesmo horrenda. O que tem de bom não chega a compensar o estrago que vem provocando. Nossa Constituição nasceu de dentadura, veio ao mundo de bengala. Sabendo-a próxima da morte, seus pais marcaram o enterro para dali a cinco anos.
Pois bem: podendo assumir o histórico papel de coveiros de uma Constituição morta, nossos deputados e senadores preferiram deitar eles próprios no fundo da cova. Sim, deixaram intacto o cadáver que já cheira mal e decidiram enterrar-se a si próprios.
Num país sério, os opositores da revisão constitucional não se reelegeriam. O eleitor os sepultaria com desonra. Chamaria a todos de covardes no próprio velório. E estaria fazendo justiça. Pois foi por pura covardia, por receio de perder votos, que os parlamentares se recusaram a mexer em temas como a Previdência, a estabilidade do servidor e o sistema tributário. Terra neles, eleitor.

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