São Paulo, sexta-feira, 3 de junho de 1994
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O 'Anjo Negro' recupera a cor original

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Peça: Anjo Negro
Autor: Nelson Rodrigues
Diretor: Ulysses Cruz
Elenco: Christiana Guinle, Antônio Pompêo, Ida Gomes, Marcos Winter e outros
Onde: Teatro Nelson Rodrigues/ Conjunto Cultural da Caixa (av. República do Chile, 230, tel. 021/262-0942, Rio)
Quando: de quinta a sábado, às 21h, domingo, às 19h
Preço: CR$ 15 mil (sábado e domingo) e CR$ 12 mil (quinta e sexta)

"Virgínia, a Medéia de marfim. Ismael, o Jasão de ébano."
Aposto como, mais de uma vez, Nelson Rodrigues se referiu nesses termos aos protagonistas de sua peça, "Anjo Negro". Exageros à parte, a comparação tem lá sua razão de ser. Virgínia também mata seus filhos e ama e odeia Ismael tanto quanto Medéia amava e odiava Jasão. Com um agravante: Virgínia, vale lembrar, é branca, e Ismael é negro.
Não foi, porém, da tragédia de Eurípides que os primeiros leitores e críticos de "Anjo Negro", escrita em 1946 e só encenada dois anos depois, se lembraram, mas de "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill. Por duas razões: Jones era negro como Ismael e O'Neill, um modernizador da tragédia clássica grega, que dela aproveitou o que podia, inclusive o tradicional coro que comenta a ação.
Um resumo da peça –movida a lascívia, adultério, taras, doentios ciúmes familiares, violações, homicídios, infanticídios e lesões corporais graves– não deixa dúvidas quanto a sua exata filiação: ela é a síntese, em clave grega, de "Vestido de Noiva" com "Álbum de Família". Puro Nelson Rodrigues, com todas as suas obsessões em riste.
"Ela é mais para ser vista no palco do que lida", afiança o diretor Ulysses Cruz, que hoje à noite entrega a sua versão de "Anjo Negro" ao público carioca. Acatei a tese depois de um ensaio corrido, cujos pontos altos me pareceram o lutuoso e sintético cenário de Hélio Eichbauer, a marcante presença de Christiana Guinle (Virgínia) e algumas idéias de "mise-en-scène". Espero, no entanto, que Ulysses tenha conseguido acelerar ainda mais o ritmo de sua montagem.
Embora tenha procurado "ser simples e absolutamente reverente às palavras do autor", Ulysses sentiu-se obrigado a aparar algumas falas do texto original ("não mais do que 5%") para melhor dinamizá-lo. "As platéias de hoje não têm a calma das de antigamente", ressalva o diretor, estudioso de "Anjo Negro" desde os tempos em que trabalhava como assistente de Antunes Filho.
O crítico Sábato Magaldi, que a enquadra entre as "peças míticas" do autor (as outras: "Álbum de Família", "Dorotéia" e "Senhora dos Afogados"), lembra no prefácio ao "Teatro Completo de Nelson Rodrigues", recentemente editado pela Nova Aguilar, que Nelson a considerava uma obra "pestilenta" e "fétida", capaz de "produzir o tifo e a malária na platéia". Não chegou a provocar tamanhas moléstias, mas nunca mais foi vista em palcos profissionais, justamente por ser um texto problemático, um tanto quanto lento e cercado de inverossimilhança por todos os lados.
Para dotar os personagens de maior credibilidade, Ulysses Cruz evitou ao máximo a empostação teatral, optando por um timbre interpretativo "mais realístico". Quanto ao resto, procurou ser fiel "aos desejos do Nelson", alguns dos quais colhidos junto a amigos do autor e contemporâneos da encenação original.
Produzida no Rio por Maria Della Costa e Sandro Polloni, com direção de Ziembinski, gerou bate-bocas por vários meses. Encarou, primeiro, a censura, que interditou sua encenação. Liberada, defrontou-se com hordas de moralistas, que a consideraram nojenta, obscena e coisas piores. A crítica se dividiu. Quem gostou, gostou mesmo –a ponto de falar em "poesia selvagem" e "obra-prima do estilo barroco". Nenhum deles, contudo, se deu conta do principal: em cena, um absurdo saltava aos olhos.
A cor da pele de Ismael de fato era preta, mas preta de graxa, como a de Al Jolson em suas imitações de cantor "minstrel". Sob o negro verniz, um ator branco, chamado Orlando Guy. Nelson ficou pasmo. Havia escrito a peça pensando no ator negro Abdias do Nascimento, mas o teatro "sério" daquele tempo –estamos em 1948– só admitia negros encarnados por brancos com o rosto pintado. Até Ziembinski fechou com a ignóbil tradição.
Hoje à noite, outros tempos, o anjo Ismael entra em cena nos conformes, com a negritude completa de Antônio Pompêo. Em papéis secundários, Marcos Winter (Elias), Bel Kutner (Ana Maria) e dois trios que nos remetem aos áureos tempos do rádio e do Cinema Novo: o das tias (Elza Gomes, Helena Ignez e Maria Gladys) e o do coro grego (Ruth de Souza, Léa Garcia e Jacyra Silva).

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