São Paulo, sexta-feira, 3 de junho de 1994
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As sombras e o pó

CARLOS HEITOR CONY

Carlos Heitor Cony
RIO DE JANEIRO – Havia na Ilha do Governador, lá para as bandas da Freguesia, um terreno baldio numa das zonas mais valorizadas do bairro. Ali se jogavam peladas e pelo menos um craque mundial andou dando chutes por lá: Nilton Santos, que foi chamado de "enciclopédia do futebol".
A posse do terreno era polêmica. Uns diziam que era da Marinha, outros da Aeronáutica, a maioria achava que era da prefeitura mesmo. Havia o projeto de ali se construir um hospital-escola.
Eu conheci a maquete já em ruína, obra necessária e barata. Era guardada nos fundos de uma velha garagem de barcos; só saía dali em época de campanha eleitoral, quando os candidatos davam a graça de suas presenças ao povo ilhéu. Não houve candidato que deixasse de ser fotografado ao lado da maquete: Dutra, Eduardo Gomes, Juarez Távora, Marechal Lott, Jânio Quadros, Lacerda, Negrão de Lima –sem contar os candidatos a cargos menores.
Durante o regime militar não havia candidatos –aí mesmo é que a maquete apodreceu na garagem. Em compensação, foi a maquete mais fotografada do Brasil. Outro dia, mexendo em coleções de jornais, lá estava ela, na primeira página de um então "vespertino" –os jornais eram matutinos ou vespertinos conforme a hora em que rodavam.
Pois o tal vespertino conseguira pegar o candidato (o marechal Lott) ao lado da maquete e não deixara o assunto para os matutinos do dia seguinte. Lá estava o título: "Lott construirá o hospital-escola da Ilha".
Evidente que o hospital até hoje não foi construído. Nem adianta argumentar que o Lott perdeu a Presidência para Jânio Quadros: o próprio Jânio lá esteve e fez a mesma promessa ao lado da mesma maquete.
Maquete que talvez ainda exista no fundo de alguma garagem. É que nem aquele Jesus Cristo dos antigos estúdios fotográficos. O menino ia fazer a primeira comunhão, o retrato era indispensável: o menino de mãos postas, o terço, o livro de orações e, como fundo, o Jesus Cristo de ateliê. Depois da foto, tanto o Jesus Cristo como a maquete voltavam às sombras e ao pó.

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