São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Guerra consagra censura à imprensa

JANIO DE FREITAS
DO CONSELHO EDITORIAL

Jornalismo de guerra e censura têm convivência íntima. Na Segunda Guerra Mundial, o bom convívio elevou-se a uma sólida fraternidade. Tanto nas zonas de guerra, entre correspondentes e censores militares, como nas redações. A mais breve entrevista coletiva de que se tem notícia ilustra bem o quanto jornalismo e censura chegaram a estar afinados.
Sem comando na ação do Dia D, o general Patton apareceu com seu cachorro bull-terrier para uma visita à frente, logo nos primeiros dias da invasão. Os aliados ainda mantinham, na costa inglesa diante de Calais, um contingente-fantasma supostamente comandado por Patton, para fazer os alemães esperarem um segundo desembarque acima da Normandia.
O aparecimento de Patton devia significar notícias importantes e a excitação dos repórteres chegou ao auge quando, minutos depois, foi convocada uma entrevista coletiva. Em vez do general, porém, falou-lhes um oficial de informações: "Senhores, não sei se alguém viu aqui o que lhe pareceu o general Patton com seu cachorro. Quem viu, viu errado. Obrigado".
Nas redações, a autocensura estava promovida a componente da ética do jornalismo. Diretor do radiojornalismo mais ouvido nos EUA, o da CBS (não havia TV), Paul White elaborou normas muito judiciosas para seus numerosos correspondentes de guerra e redatores na retaguarda. A última delas dizia: "Lembre-se de que ganhar a guerra é sagradamente mais importante do que noticiá-la".
Mesmo que menos explícitos nas normas, os jornais não se distinguiam das emissoras de rádio.
Isso talvez explique o momento jornalisticamente mais espantoso da guerra: jornais e rádios americanos e ingleses foram "furados" na notícia sobre o desembarque das suas tropas na Normandia.
E foram "furados" pelo jornalismo da Alemanha, ferreamente vigiado pelo nazismo, ao qual a notícia era tão desfavorável. Às 6h30 da manhã de 6 de junho, hora alemã, a Rádio de Berlim dá o "furo" mundial do desembarque aliado na Normandia, iniciado apenas uma hora antes.
As agências alemãs reproduzem a notícia e as dos aliados captam a reprodução. Enfim, a CBS põe a notícia no ar. Mas não lhe basta atribuí-la à "Associated Press", citando a alemã "Transocean". Faz tantas ressalvas ("insistimos que o despacho vem do inimigo", "não se sabe se é propaganda alemã ou tentativa de desvirtuar informações"), que, assim, mais desacredita do que informa.
Embora os americanos estivessem todos voltados para a guerra e sua imprensa não tivesse os problemas materiais da inglesa, a tiragem total dos jornais dos EUA cresceu apenas 10% durante a guerra. O rádio e as revistas foram as estrelas do jornalismo naqueles anos, e não só nos EUA.
A BBC, que falava para todo o mundo e se destacou como a melhor das melhores emissoras, no Dia D tinha 15 repórteres com os pára-quedistas, em bombardeiros, navios e lanchas e entre as primeiras tropas de desembarque.
Pombos-correio, gravadores de discos (não havia fita cassete), telégrafo sem fio, intervalos na radiofonia dos pilotos –o pessoal da BBC usou de todos os recursos possíveis, além da coragem, para retratar o Dia D.
Nada foi ao vivo, por causa da censura, mas a rapidez e a autenticidade foram preservadas. Nos EUA, onde até então os relatos dos correspondentes eram lidos por locutores nos estúdios, ouvir as gravações da BBC com os sons da guerra causou impressão fortíssima. Até ali, a guerra tivera tratamento absolutamente higiênico.
Muito mais do que os jornalistas de texto, os fotógrafos foram o grande destaque da imprensa. Mas corriam riscos enormes por um trabalho que sofria restrições invioláveis.
Não se publicavam, por exemplo, fotos de soldados aliados mortos. Feridos, só se muito levemente. Os bombardeios de cidades inglesas mostravam ruínas, mas não a destruição nas populações. Apenas os inimigos eram mortais.
Só em 1943 os EUA vêem, em página inteira da revista "Life", uma foto de americanos mortos. E assim mesmo era preciso deduzir serem americanos, porque o fotógrafo George Strock cuidou de evitar traços identificáveis dos três corpos meio enterrados pelas ondas numa praia da Nova Guiné.
Mas, curiosamente, o trabalho fotográfico mais notório da Segunda Guerra foi o de uma série de fotos frustradas. Já famoso desde a Guerra Civil Espanhola, Robert Capa, também da "Life", chegou à Normandia com a primeira leva de desembarque no Dia D. Desde a lancha até os primeiros combates em terra, durante hora e meia fez 106 fotos.
Tomou outra lancha e à tarde estava na Inglaterra, para preparar seu material: "E aí um laboratorista, com pressa de ver as fotos do desembarque, fez os filmes secarem muito depressa. O calor excessivo estragou meus filmes e só dez fotos se salvaram". Nove em parte, só uma inteiramente. (Janio de Freitas)

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