São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994 |
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Gastronomia na festa contrasta com os dias difíceis de combates
NINA HORTA
John Lehodey jamais esqueceu a libertação de sua cidade natal pelas tropas norte-americanas. Hoje, presidente dos hotéis Sofitel nos EUA, vai abrir suas portas com mesas de comida típica normanda. O menu para os veteranos é o seguinte: crème dieppoise (sopa de moluscos enfeitada com camarões e vieiras), blanc de volaille valleé d'auge (peito de galinha salteado com maçãs e creme de leite) e o famoso trou normand (um trago de calvados no meio da refeição). No dia 5, a rainha Elizabeth 2ª recebe no iate real Britannia, para um jantar, e depois parte em direção à Normandia. No Dia D, nove chefes de Estado se reúnem, na praia de Omaha, depois de um almoço presidido pelo presidente da França. Em 1944, o clima era bem outro. A.J. Liebling, correspondente do "New Yorker" e gourmet, estava num dos navios do desembarque. Aqui e ali, nos seus escritos, pipocam alusões à comida. A cozinha do barco era acanhada e não dava para fazer refeições quentes. Mas os mantimentos ficavam expostos em latas, e os rapazes mexiam nelas o dia inteiro, procurando alguma coisa que lhes apetecesse e comendo sem parar, por falta do que fazer. O desembarque aconteceu num piscar de olhos. Em quatro minutos, os 140 passageiros desceram, com água pelas canelas e uma coragem de cão. Três morreram e um ficou muito ferido. O chão do tombadilho cobriu-se de leite condensado e sangue. A bala que atingiu um dos soldados furou uma caixa cheia de leite que se esparramou por todos os lados. Liebling se lembra de que ninguém teve fome naquele dia. Nos dias que se seguiram o apetite voltou. Os camponeses os esperavam com a melhor sidra engarrafada da região, em meio à batalha. O inimigo, formado por soldados já resignados com a derrota, se enchia de manteiga, creme e ovos, armazenando gordura para os dias que viriam. Logo depois do desembarque a artilharia americana bombardeou campos normandos, não sem antes tentar evacuar as fazendas. "Como?", perguntavam os fazendeiros. "Um agricultor pode sair de casa e quando volta está tudo em seu lugar. Mas o que fazer com o rebanho? O gado pode morrer de fome, de doença, passear em frente à linha de fogo... Não. Sair do campo, só com o gado junto, e o gado precisa de pasto." Mortas pelo bombardeio, as vacas ficavam de pernas para o ar, como vaquinhas de madeira de um presépio derrubado, com a diferença que cheiravam muito mal. O abastecimento de comida para os americanos não era lá essas maravilhas. Tinham que se contentar com as latas e com o que mais conseguissem arranjar. O livro "Tanks for the Memories" fala um pouco da comida dos GIs. Ovos das fazendas, um coelho grande e gordo que só um sulista soube preparar... Um dos rapazes não se lembra do nome de uma só cidade por onde andou, mas jamais se esqueceu de Reims, a do champagne. No seu tanque, havia um compartimento bem apertado para bombas, e que eles não usavam por ser incômodo. Uma idéia brilhante foi o que bastou. Champagne rosada. Encheram todos os buracos com garrafas que bebiam no café, no almoço e no jantar. Batatas Ninguém sabe quem inventou primeiro. Conseguiram latas vazias que enchiam até a metade com pedriscos. Cobriam com batatas dos campos normandos e mais pedrisco. Amarravam as latas nos canos de escape dos tanques e depois de andar o dia inteiro jantavam batatas assadas no ponto. Fontes: "Between Meals", de A.J. Liebling (North Point Press); "The New Yorker Book of War Pieces" (Ed. Bloomsbury); "Tanks for the Memories", publicação independente feita pela Associação de Veteranos de Guerra, para angariar fundos para as comemorações do Dia D; "Foods and Arts", revista mensal Texto Anterior: Guerra consagra censura à imprensa Próximo Texto: Números; Na contramão; Comida quente; Yin-Yang; A Frase; A Frase; Duro de roer; Respeito; Sinceridade; Super-herói; Tapeçarias Índice |
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